Amour-propre é um conceito, talvez uma descoberta, realizada por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que vale muito a pena ser revisitada justamente hoje, quando os relacionamentos, em especial entre pessoas de diferentes grupos, tribos e culturas, alimentados de preconceito, andam tão tensos e frequentemente até resvalando para a violência.
Rousseau sempre se sentiu estrangeiro em todos os lugares e círculos em que viveu. Ainda adolescente, deixou a terra natal, Genebra-Suíça, e perambulou pela Europa. Trabalhou como secretário, viveu de favores, foi tutor, frequentou a nobreza, foi enciclopedista, músico compositor e teve muito sucesso em vida como filósofo, apesar de ter começado um pouco tarde sua carreira, aos 38 anos.
Conquistou fama da noite para o dia quando se inscreveu e ganhou um prêmio da Academia de Dijon. Viveu na França, e essa condição de estrangeiro sempre foi um peso que influenciou muito seu agir e pensar. Foi amigo de Diderot, D’Alembert, Hume, Condillac e muitas outras personalidades da agitada vida cultural de seu tempo. Mas brigou com todos, pois se sentia traído, incomodado, perseguido e inúmeras vezes o foi de fato. Em especial com a Igreja, tanto Católica como Protestante, teve muitos problemas e até processos, livros queimados, interdições, por sua posição favorável a uma religião natural, desligada de qualquer tipo de institucionalização. Para os pensadores empiricistas ou materialistas, ele era religioso demais; para a Igreja, um ateu.
Em plena Revolução Francesa, Rousseau foi um crítico implacável do modo de vida burguês e talvez o principal responsável pelo aspecto pejorativo que o termo carrega até hoje. Era igualmente ácido com a frivolidade da nobreza, porém seus valores têm claramente uma ascendência nos ideais da cavalaria. São muito mais espartanos que atenienses.
Os dois conceitos — “amour-propre” e seu par “amour de soi-même” —, ele os desenvolve pela primeira vez em seu ensaio Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens, também conhecido como Segundo discurso (1755). Mas depois os retoma várias vezes. Em especial naquela que Rousseau considerou sua obra mais importante: Emílio ou Da educação (1762). Existe a tradução literal, que seria “amor-próprio” e “amor de si mesmo”, mas Rousseau dá um sentido tão específico a esses termos que vou aproveitar o português para deixá-los no francês mesmo, de modo que o sentido literal interfira menos naquilo que eles carregam no pensamento do filósofo.
No Segundo discurso, o autor faz uma regressão e especula sobre um tempo remoto, nas origens da espécie humana. Busca entender como pode e deve ter sido esse primórdio necessário, realizando uma investigação mental. Não é de grande valia hoje o que ele coloca sobre o surgimento da linguagem ou a sucessão das invenções, da agricultura, da metalurgia, entre outras aventuras na antropologia. Mas com relação a uma psicologia dos relacionamentos, ao papel dos sentimentos na trama do tecido social, aí, sim, ele deu uma enorme contribuição.
O quadro que ele pinta como o início de tudo é um pouco desolado. Mostra pessoas solitárias, desgarradas, vivendo em florestas e procriando em encontros fortuitos que logo se desfazem. Quanto à prole, esta seria abandonada à própria sorte o mais cedo possível. Com toda a improbabilidade de que animais com nossa constituição física tenham vivido dessa maneira, temos de entender que Rousseau quis construir um cenário pré-social para depois analisar as transformações que o convívio comunitário traria, pois esse é o tema que lhe interessava de fato.
A força do pensamento de Rousseau, o ponto em que ele mais fez diferença, foi dar aos sentimentos e às emoções uma importância que o racionalismo crescente de seu tempo parecia tentar apagar. Lemos no Segundo discurso: “Apesar do que dizem os moralistas, o entendimento humano deve muito às paixões e estas lhe devem muito também. É por suas atividades que nossa razão se desenvolve. É pela busca do prazer que procuramos o conhecimento. Não é possível conceber por que motivos aquele que não tenha medos e desejos se daria ao trabalho de raciocinar”.
A mim me parece muito simples e convincente. Pode-se objetar, no entanto, que o entendimento gere prazer por si só e que não seja sempre meio, mas funcione também como fim. Talvez o erro esteja em insistirmos nessa separação entre razão e sentimento. Mas, de qualquer forma, naquele momento, foi importante Rousseau colocar mais pesos do outro lado da balança, mesmo que a existência dessa balança seja uma hipótese ainda mal confirmada.
Diferentemente de pensadores como Thomas Hobbes (1588-1679), que em seu Leviatã (1651), obra fundamental da filosofia política moderna, associa aos seres humanos uma natureza egoísta e agressiva, precisando de esforço moral e de uma espada para colocá-la no caminho do bem, Rousseau considera que somos bons em nossa natureza profunda. Em uma carta a Christophe de Beaumont (1703-1781), arcebispo de Paris, que condenou oficialmente seu livro Emílio, Rousseau fala dessa sua hipótese de base: “O princípio fundamental de toda moral, sobre o qual eu discorri em todos os meus escritos, e que desenvolvi nesse último [Emílio] com toda a clareza da qual fui capaz, é que o homem é um ser naturalmente bom, amante da justiça e da ordem, e que não há nada de perversidade original dentro do coração humano”.
O sentimento que ele elegeu como o mais importante e distintivo para essa disposição da espécie humana foi a nossa capacidade de sentir compaixão, de nos comovermos com o sofrimento alheio. Esse é o germe e a prova de uma natureza humana essencialmente boa. Lemos em seu Segundo discurso: “Eu não creio que devamos temer qualquer contradição ao darmos ao homem essa única virtude natural a qual, mesmo o mais ousado detrator das virtudes humanas, foi obrigado a reconhecer [refere-se a Hobbes]. Eu falo da compaixão, disposição apropriada a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como nós. Virtude a mais universal e a mais útil ao homem, nele antecede todo uso da reflexão. É tão natural que dela até os animais dão algumas vezes sinais evidentes”.
A ideia de “natural” ele associa ao fato de que o sofrimento alheio involuntariamente nos comove e, por mais que nossa razão queira nos poupar do desconforto que a experiência nos proporciona, essa possibilidade escapa ao nosso controle. Em Emílio, Rousseau volta ao tema com maior profundidade e tira conclusões que são talvez menos elogiosas a esse nosso pendor natural. Ele remarca uma ocorrência, concomitante ao desconforto, que poderia até ser sinal de certa perversidade: “A compaixão é doce, pois, quando nos colocamos no lugar daquele que sofre, nós sentimos o prazer de não sofrer como ele. A inveja é amarga, pois o aspecto de um homem feliz, longe de colocar o invejoso em seu lugar, lhe dá a tristeza de nele não estar. Parece que um nos poupa do mal que ele sofre e o outro nos rouba as boas coisas das quais ele goza”.
Se a compaixão nos inclina a querer o bem de nossos semelhantes, existe, no entanto, outro sentimento ainda mais nativo que a antecede e independe de qualquer contato exterior: trata-se do amour de soi-même. No início do quarto livro de Emílio, Rousseau fala sobre ele: “A origem de nossas paixões, a fonte e o princípio de todas as outras, a única que nasce com o homem e não o deixa jamais enquanto ele viver, é o amour de soi: paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras que não são, em certo sentido, outra coisa que suas modificações”. O amour de soi ou amour de soi-même, como aparece em outras passagens, é a inclinação a receber e buscar tudo o que nos dê conforto ou prazer e a rejeitar e evitar tudo o que nos cause algum mal.
O livro Emílio trata de um processo de educação, de uma experiência imaginária na qual um tutor irá acompanhar Emílio desde o nascimento até a vida adulta. Há muita reflexão sobre nosso desenvolvimento cognitivo e afetivo. A princípio, o bebê não tem consciência de que existe um mundo além de si próprio, sendo lento o processo pelo qual passa a encarar essa realidade. À medida que a criança vai percebendo que existem outros seres além dela, a satisfação de seus desejos, seu amour de soi, começa a ser mediada pela compaixão; é esta que impede que um egoísmo desenfreado instale a barbárie e a selvageria, imaginadas como naturais por Hobbes.
Lemos no Segundo discurso a relação entre os dois dispositivos: “É bem certo então que a compaixão é um sentimento natural, o qual, moderando em cada indivíduo a atividade do amour de soi-même, concorre à conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva, sem reflexão, ao socorro daqueles que vemos sofrer, é ela que, dentro do estado de natureza, faz o papel de lei, de costumes e de virtude, com a vantagem de que ninguém é capaz de desobedecer à sua doce voz”.
Compaixão e amour de soi, quando sozinhos, reinam em harmonia virtuosa em uma sociedade simples e rústica. Mas essa é apenas uma fase intermediária entre um estado selvagem, solitário, e a sociedade madura e degradada que Rousseau enxergava em seu tempo. Ele fala com ternura de Esparta na Grécia antiga, elogia a vida campestre das pessoas simples, mas ostenta desprezo pela vida na corte, pela burguesia afluente e pela falsidade do clero da Europa do século XVIII. A razão, o motivo da perda da ingenuidade, o que seria o pecado original nesse seu mito de origem, é o que Rousseau chama de amour-propre.
Ele o faz de duas maneiras: uma por meio do despertar de seu Emílio, outra na dinâmica das relações entre os membros de uma comunidade primitiva e hipotética. Neste segundo caso, Rousseau reflete sobre os momentos nos quais se intensificaram os relacionamentos, aumentaram os períodos de convívio, de lazer, e as pessoas começaram a se observar e a entender o que e como o amour de soi se satisfaz ou se frustra.
Do Segundo discurso: “Acostumando-se a reuniões em frente a cabanas ou ao redor de uma grande árvore, o canto e a dança, verdadeiros filhos do ócio, tornaram-se a distração ou até a ocupação de homens e mulheres sem ter o que fazer. Cada um começou a olhar para os outros e a querer ser visto também. A estima pública tem um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloquente se tornou o mais considerado. Foi o primeiro passo em direção à desigualdade e ao vício ao mesmo tempo. Dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e o desejo. A fermentação causada por esse novo levedo produziu enfim compostos mortais à felicidade e à inocência”.
Em Emílio, Rousseau argumenta que o bebê reconhece os cuidados que recebe e começa a perceber que estes são voluntários de algumas pessoas que o cercam, sendo essa percepção que faz com que ele desenvolva o amor a quem o amamenta e conforta. A partir daí, começa a cobrar a mesma atitude de todos. Não entende que alguém possa existir a não ser para servi-lo. Aqueles que o aborrecem ele evita e os que mostram querer aborrecê-lo ele odeia.
“O amour de soi, que só diz respeito a nós mesmos, está bem quando nossas necessidades estão satisfeitas, mas o amour-propre, que se compara, não está jamais contente e jamais estará, pois este sentimento, ao nos preferir aos outros, exige também que os outros nos prefiram a eles mesmos, o que é impossível. Assim, o que rende o homem essencialmente bom é ter poucas necessidades e pouco se comparar aos outros; o que o rende essencialmente mau é ter muitas necessidades e prezar muito as opiniões. Sobre esse princípio, fica fácil ver como podemos dirigir ao bem ou ao mal todas as paixões das crianças e dos homens. É verdade que, sem poderem viver sempre sós, eles dificilmente viverão sempre bons.”
O mais interessante nesse conceito de amour-propre é a percepção de Rousseau de que exercemos uma demanda constante, muito mais exigente do que normalmente supomos, de sinais de aprovação e de estima de todas as pessoas com as quais mantemos contato regular ou esporádico, tanto as mais próximas como as ocasionais. Qualquer demonstração de desrespeito, desprezo ou reprovação à nossa pessoa, nossa família, modo de ser ou de agir afeta-nos de maneira muito enérgica. Mesmo a simples indiferença incomoda. Rousseau eleva essa demanda por estima à condição de primeira necessidade. A mágoa produzida por sua falta não passa sem ser devolvida à sociedade. Lemos ainda no Segundo discurso:
“Tão logo os homens começaram a se avaliar mutuamente e a ideia de estima se formou em seus espíritos, cada um pretendeu ter direito a ela, e não foi mais possível que a mesma faltasse impunemente a ninguém. Daí saíram os primeiros deveres da civilidade, mesmo entre os selvagens. Então todo dano intencional se tornou uma ofensa, pois, junto com o mal causado, o ofendido via também o desprezo por sua pessoa, muitas vezes mais insuportável que o mal em si. Foi assim que, cada um reagindo à injúria recebida de maneira proporcional à avaliação que fazia de si mesmo, as vinganças se tornaram terríveis e os homens, sanguinários e cruéis.”
Os “deveres da civilidade” incluem as formalidades do “bom dia”, “boa tarde”, a boa utilização dos pronomes de tratamento, dar passagem segundo as regras em uso, levantar-se da cadeira, tirar o chapéu, olhar ou não olhar nos olhos, estender a mão, sorrir, não dar as costas, não mostrar a sola dos pés, enfim, cada cultura tem um código ao qual não damos valor quando ele é seguido, pois esse é, como se diz, o mínimo. Mas todos esses sinais externos, esses formalismos são apenas a maneira, a oportunidade para expressar um sentimento fraternal para com nossos semelhantes que precisa ser genuíno. Temos um sexto sentido para detectar frieza, afetação, ironia ou sarcasmo nesses casos. Quando vivemos longe de hostilidades, ou quando somos nós que as produzimos unilateralmente, não percebemos como um olhar, uma saudação ou um sorriso sincero nos conforta e tranquiliza em nosso convívio social diário.
A maioria das pessoas não sabe o que é não poder contar com esses simples sinais de estima e valor. O código certamente estabelece hierarquias e preferências e cada um tem direito de exigir ser tratado de acordo com sua posição. A quebra desse código, sem que nenhum delito ou infração mais grave lhe seja concomitante, sem desrespeito a qualquer lei civil, oferece a oportunidade para perversidades muito atrozes. É um tipo de agressão que não deixa marcas visíveis. Ferir o amour-propre de alguém é sempre um golpe baixo. Fazê-lo de modo recorrente e sistemático é desumano. A repressão ao preconceito progrediu muito em questões objetivas no direito civil, mas, talvez até por isso, suas formas dissimuladas em insinuações, pretensas brincadeiras, olhares e outras formas de ostentar a recusa da estima e mesmo do respeito aperfeiçoaram-se.
O que torna essa arma extremamente nefasta em nossa sociedade é que somos demasiado competitivos e agressivos. Dificilmente abrimos mão de meios eficazes para ferir e abater, em especial os mais fragilizados, se isso nos fizer sentir em uma posição algo acima na hierarquia. O conselho de Rousseau — “ter poucas necessidades e pouco se comparar aos outros” — é exatamente o inverso do que nossos valores de vida consumista e competitiva nos incitam a fazer. Parece que amour-propre tem uma relação muito íntima com o uso do preconceito nessa corrida de uns contra os outros. Talvez, em vez de dizer “não o usem”, seria mais sensato tentarmos correr de outra maneira ou por outros valores.
Referências: