Este post faz parte de um estudo que iniciei sobre os mecanismos do preconceito. Por enquanto, estou coletando e registrando material que possa ser útil para desenvolver mais tarde uma reflexão sobre o tema.
Por que honra e preconceito?
A primeira declaração dos direitos universais do homem foi escrita há mais de duzentos anos. Hoje, pode-se dizer que seu valor como princípio não é questionado. Não há partido político que se posicione abertamente a favor de privilégios baseados em linhagem, cor, etnia ou condição social; no entanto, o preconceito ainda existe. Não diria, intuitivamente, que estamos apenas atacando-o em seus últimos bastiões e que logo irá desaparecer. Às vezes me parece até que por todos os lados há uma certa atratividade em formas de segregação que têm no preconceito seu instrumento de base. Parece-me às vezes que os direitos individuais conflitam com os princípios de igualdade e, em vez de rumarmos para uma miscigenação completa, para a formação de uma cultura homogênea, de um futuro comum, como era o sonho da Modernidade, são cada vez mais fortes os conflitos que têm por base a formação ou eliminação dos guetos, o aquartelamento de culturas e identidades antigas ou recém-criadas que rejeitam fortemente o princípio de um ideal comum a toda a humanidade. Nessa linha, as pessoas enxergam-se apenas no interior de um grupo restrito que se coloca e se nutre da oposição com tudo o que lhes é externo. Isso vale tanto para minorias como para maiorias que querem se diferenciar e hostilizam cada vez mais seus diferentes.
Honor, por Frank Henderson Stewart
Com essa perspectiva em mente, fui estudar o conceito de honra. “Honra” é uma palavra que cheira a coisa antiga, quase em desuso, muito ligada a visões machistas e elitistas. Porém, ela entretém ainda uma relação com o conceito de dignidade, como um pré-requisito para pertencer de fato a um corpo social, e nessa área acho que pode jogar alguma luz sobre a questão do preconceito. Li um livro intitulado Honor, escrito por Frank Henderson Stewart (detalhes neste link), e vou registrar neste post alguns de seus pontos principais.
Honra está ligada à ideia de valor de uma pessoa, de sua integridade e de sua dignidade. Possui um lado externo, social, que diz respeito à sua reputação, ao que os outros pensam sobre sua conduta, suas motivações; e também um lado interno de se sentir uma pessoa honrada, orgulhosa por viver naturalmente segundo seus princípios. Ela é honrada não à custa de contradições internas, mas por sentir uma inclinação inata a viver dignamente. Tem forte relação com autoestima.
O autor assinala que honra já foi vista como uma qualidade da pessoa, como um sentimento. Mas o que ele propõe como objetivo de seu ensaio é que seja vista como um “direito”, como um direito ao respeito ou direito a ser tratado como uma pessoa de valor. Muito importante é o conceito de que honra pode ser adquirida, perdida, recuperada e também tornar-se irrecuperável em certos casos. Não é, portanto, algo intrínseco à pessoa por qualquer de seus atributos permanentes.
Para Stewart, a honra passa por um longo processo de internalização. Trata-se do desenvolvimento de um “senso de honra” que põe mais peso na conformidade aos valores do indivíduo do que na observância de um código objetivo da sociedade. Na Antiguidade e na Alta Idade Média, a honra legitimava-se tanto social como pessoalmente apenas por atos e resultados. Assim, contanto que o rei ou general ganhasse as disputas e batalhas, vencendo seus inimigos, ele seria uma pessoa honrada. Na primeira derrota, perderia sua honra. Apenas no Renascimento começa a tomar forma a ideia de que, lutando bravamente e dentro das normas de uma luta justa, ainda que não vença, a honra do guerreiro ficaria preservada. A bravura, mesmo sendo uma disposição interna no indivíduo, passa a ser importante na constituição de sua honra.
Tal processo de internalização coloca em relevo o conceito de integridade, e honra passa a ser fortemente associada a “viver seus próprios princípios”. Trata-se de um deslocamento de conformidade de conduta para a conformidade a princípios morais difíceis de avaliar. O autor dá o exemplo hipotético do conflito gerado por um oficial alemão, no final do século XIX, que recusasse um duelo por ser uma prática banida por sua religião católica. Como interpretar tal decisão? Covardia ou devoção? O que pensariam os protestantes? Chama assim a atenção para o fato de que uma honra completamente subjetivada, colocada apenas do ponto de vista do indivíduo, acaba por complicar em muito a vida das instituições sociais que tratam de modo completamente diferente pessoas consideradas ou não honradas.
Algumas classificações interessantes são estabelecidas e constituem ferramentas úteis para a discussão do tema. “Honra horizontal” e “honra vertical” referem-se a dois sistemas de convenções sobre como mostrar respeito e reconhecimento da honra em direção a iguais (horizontal) e em relação a superiores (vertical), no caso de sociedades que cobram diferentes tratamentos entre diferentes níveis sociais (rank, no inglês). Mas também aplicam-se à honra como direito ao respeito, entre pais e filhos, que seria do tipo vertical por não ser simétrica.
Nesse ponto, sobre a honra horizontal, Stewart introduz a ideia de “grupo de honra” (honor group, no inglês), no qual a honra, como um direito, pode ser definida como o ser aceito como igual dentro desse grupo e, portanto, merecedor e devedor de respeito dos e aos seus pares, respectivamente. Aqui eu acho que já temos algo interessante para falarmos em preconceito como sendo a obliteração, consciente ou não, desse caminho. A honra funciona, assim, como consolidação do sentimento de pertencer ao grupo. O não pertencimento seria talvez o sentimento-chave que comunica o preconceito.
Dentro de honra horizontal o autor introduz ainda um subgrupo chamado “honra pessoal”, que tem uma condição aparentemente pouco determinante, mas que, a um exame mais cuidadoso, mostra-se mesmo fundamental. Além de o grupo de honra ter seu código de respeito mútuo entre iguais e o risco de perda desse direito, é preciso que ele tenha estabelecido um termo, uma forma léxica definida e em uso, para fazer referência a esse direito. Ou seja, precisa ter e entender a palavra “honra” ou equivalente. Essa abstração de uma convenção em conceito é a pista de que se trata realmente de um valor para aquele grupo e de que este lida com ele de forma objetiva.
O perigo sempre iminente de perder a honra introduz um último conceito abordado no livro, que é a “honra reflexiva”. Trata-se de uma presunção de culpa (em vez da habitual presunção de inocência de nosso sistema jurídico) e que faz com que, ao ser acusado, atacado em sua honra por qualquer membro do grupo de honra, um indivíduo terá sua reputação colocada sob suspeita por seus pares. É instantânea a diminuição de seu prestígio ante a acusação. Como membro do grupo, ele é cobrado a se defender e seu direito à honra fica em suspenso até que se prove inocente ou que perca de fato sua honra.
Além dessa estrutura conceitual e classificatória, resumida acima, o autor faz uma análise dos conceitos de honra no Ocidente (Europa e Novo Mundo) e entre tribos beduínas. Stewart viveu seis anos no Deserto do Sinai, final dos anos 1970 e início dos 1980, e estudou a cultura desses nômades de ancestralidade milenar, cujos hábitos e valores representam muito do que normalmente se coloca sob a denominação “árabe”. Vou delinear brevemente algumas de suas observações a partir de um relato no livro que chamou mais minha atenção.
Em uma manhã, quando todos da tribo haviam deixado o acampamento para buscar água ou levar o rebanho a pastar, um jovem casal permaneceu no local, pois o rapaz não se sentia bem. Casados havia três anos, viviam discutindo e naquele dia não tardou para que brigassem novamente. A moça resolveu dar um basta. Pegou a filha pequena e fugiu para a “casa” de outra família. Normalmente os beduínos nem armam suas tendas e vivem ao relento mesmo, protegendo-se mais apenas no inverno. Nômades, apenas cercam um pedaço de terra para cortar o vento e tapetes finalizam o espaço que lhes serve temporariamente de lar. O marido não se deu por vencido e foi até a outra casa, onde não havia ninguém, bateu em sua mulher e trouxe-a de volta para seu pedaço de terra.
Qualquer agressão a uma mulher beduína é uma agressão a seu protetor e não a ela. O protetor é o marido, o pai, o irmão mais velho, enfim, o homem mais próximo que, por laços de família ou por assumir tal papel, seja por ela responsável. O marido pode bater na mulher na própria casa ou fora de qualquer outra casa. Mas isso não torna a mulher totalmente vulnerável à eventual perversidade de seu cônjuge. O movimento que a moça fez é reconhecido como válido no caso de brigas de casal. A mulher, na verdade, não quis se esconder; colocou-se sob proteção do dono da casa para a qual fugira e este seria o mediador para regrar a disputa que ela assumiu, com esse gesto, como pública entre ela e o marido. O que se seguiu dá uma visão de como os beduínos tratam o assunto da honra.
Duas pessoas foram desonradas naquela manhã em sua honra pessoal e reflexiva e precisavam, para resguardar o direito ao respeito da comunidade, tomar as medidas cabíveis. Essas pessoas foram o dono da casa para a qual ela fugiu e o pai da jovem.
Existem juízes para diferentes causas e um deles é o manshad, especializado em questões de ofensa à honra. Pois bem, o dono da casa que ela escolheu processou seu marido por três infrações: por entrar em sua casa sem ser convidado, por bater em alguém que estava sob sua proteção e por retirá-la de lá à força sem sua permissão.
A falha do protetor também precisa ser reparada. Não poderia ser uma ofensa à moça, pois, sendo mulher, ela não é “ofensável”. Foi uma ofensa a seu pai, que volta a ser seu protetor quando ela deixa o marido ainda que provisoriamente, já que uma mulher não pode ficar sem proteção. Seu pai processou o dono da casa para a qual ela fugiu, já que este não foi capaz de oferecer-lhe a proteção de que ela precisava. O fato de que a casa estava vazia não alivia em nada a falha desse protetor temporário.
Por meio desse e de outros exemplos acompanhados diretamente, o autor traça comparações com o Ocidente. A primeira delas é o aspecto legalista, que é muito forte entre os beduínos, se comparado à tendência dos europeus de colocar os assuntos relativos à honra para ser regrados entre agressor e agredido, isto é, fora do aparelho da justiça. Ele cita a instituição que foi o duelo por muitos séculos, adentrando mesmo em sua proibição pela Igreja e pelo Estado. Cita Montaigne quando ele diz: “Aquele que apela à justiça para resolver uma ofensa à sua honra desonra a si mesmo”. A razão de deixar de fora da justiça institucional as questões relativas à honra em nossa cultura, segundo Stewart, tem relação com a natureza violenta das medidas reparadoras que tais questões suscitam no Ocidente e com a proibição da violência entre os cidadãos no Estado moderno. Por comparação, a honra entre os beduínos é um assunto da comunidade e de seu sistema legal. Não é algo que diga respeito apenas aos indivíduos envolvidos em questões isoladas. Essa configuração contribui para um sistema legal robusto e depurado pelo uso recorrente que dele se faz.
Outra diferença importante é o aspecto classista da honra no Ocidente. Ela era assunto apenas da aristocracia, que se desenvolvera a partir dos ideais da cavalaria no Medievo. Com as democracias, quase caiu em desuso como conceito, embora suas convenções ainda permaneçam. Honra seria um luxo para os bem-nascidos, cabendo aos pobres a honra vertical, para dar forma ao respeito que devem a quem tem poder. Entre os beduínos, dificilmente pode-se falar em classes sociais. Existem grupos ricos e pobres, mas o sistema da honra que se estabelece entre eles é preponderantemente horizontal.
Muito interessante o ensaio para uma reflexão no estudo do preconceito. A dificuldade, relutância mesmo, que temos para colocar leis mais claras nos assuntos relativos à honra talvez tenha uma origem ou estrutura comum com a dificuldade que temos em classificar e isolar o preconceito para uso da justiça. Os dois conceitos têm em comum o fato de que lidam com uma questão de pertencimento ou não a um grupo. O preconceito manifesto pode ser visto como uma forma de desonra ou agressão à honra de uma pessoa. Fica aqui então a observação para um desenvolvimento posterior.
Referência