A ideia, como no post anterior, é ainda produzir material que possa ser útil para uma reflexão sobre o preconceito em nossos dias. Desta vez,
o foco será sobre a nobreza cristã que se formou no Oeste europeu a partir da Idade Média, digamos por volta do século VI ou VII. Pode parecer estranho à primeira vista, mas se pensarmos que o preconceito sempre carrega uma presunção de superioridade de um grupo em relação a outro, e esta parece mesmo ser sua característica marcante da qual todo o resto decorre, será fácil percebermos que temos aí um caso interessante a explorar. O plano então é investigar as motivações e instrumentos tanto na ascensão como na decadência do “ser nobre”.
Outro ponto que torna o percurso dessa nobreza interessante de examinar, com vistas a pensar no preconceito, é que a tal superioridade tinha inicialmente um sentido local, no mais das vezes entre pessoas de uma mesma religião, língua, cultura e aparência física. Porém, com a expansão marítima e a maior interação com outros continentes, em muitos casos, mas nem todos, a assumida superioridade conseguiu exportar-se de modo muito efetivo. Foi a base do chamado “eurocentrismo”, do qual tanto se fala hoje no mundo todo e, em especial, nas antigas colônias, como é nosso caso. Se foi assim, provavelmente é aí que devemos buscar as raízes do preconceito que vivemos. Ao que tudo indica, ele foi assumido por novas elites locais, ainda que não mais de linhagem nobre.
O tema é muito extenso e este texto não é mais que um bloco de notas de leituras. Os poucos livros citados estão na categoria “Referências” e o objetivo no momento é levantar pistas para um estudo posterior.
Após a dissolução da estrutura centralizada que foi o Império Romano no final do século V, uma boa parte da Europa fragmentou-se em propriedades puramente familiares ou encabeçadas por famílias. Muito pouca manufatura, muito menos comércio e a atividade era preponderantemente agrária. Analfabetismo era a regra; então minguaram a literatura, a filosofia e, com elas, as bibliotecas e a educação. Trabalhavam a terra pessoas livres e havia também muita servidão. A célula desse tecido era a família patriarcal, sendo a propriedade produtiva seu fundamento econômico. Havia dois modos básicos e interligados para garantir uma vida relativamente confortável; primeiro, possuir grandes áreas, fazendas, que fossem trabalhadas por servos ou por terceiros; segundo, invadir, saquear, roubar, apropriar-se de terras produtivas e outros ativos.
Em áreas muito extensas, não havia uma autoridade capaz de coibir esse tipo de ação com base em lei alguma. Era como se cada família fosse um país, e uma disputa entre vizinhos, uma guerra. Cada um defendia-se e atacava como podia. Todo proprietário era um guerreiro. Os mais abastados eram muito dedicados às artes das armas, esmeravam-se nos treinos e investiam em equipamentos, cavalos e armaduras de modo muito profissional. Quando um deles identificava um alvo interessante, ordenava a seus súditos, estes bem ou mal equipados, que largassem o arado e a enxada e fossem com ele para a guerra. Pois sim, ele ia junto, ia até na frente; esse é um detalhe importante como veremos a seguir.
Logo surgiram alianças, acordos entre proprietários solidários para invadir e expandir a área de influência dos membros desses “sindicatos”, se assim podemos chamar esses embriões dos futuros reinos e principados. As alianças serviam também para aportar auxílio caso algum membro fosse atacado. Um senhor de terras muito bem-sucedido que tivesse acumulado dessa forma mais hectares do que ele próprio pudesse cuidar diretamente, iria precisar de um sócio ou de um capataz, na linguagem de hoje, para manter o controle da propriedade.
Em seu Tratado da nobreza, publicado em 1761, Gilles-André de la Rocque descreve o surgimento de uma nova nobreza na Europa como resultado direto desse tipo de arranjo entre latifundiários: “O feudo é um direito de gozar de uma herança que pertence a outro e, dessa forma, dela tirar o proveito de seus frutos; o senhor doa-o como benefício, com a condição de que aquele que o aceita, em fé e juramento, comprometa-se a servi-lo, seja sozinho, seja com certo número de homens, de acordo com as receitas advindas da coisa concedida, quando este for à guerra, podendo ainda render-lhe quaisquer outros serviços […] A feudalização produziu a mais antiga e primeira nobreza, pois naquela época tudo o que um nobre tinha era o feudo, e não havia mais que dois estados, aquele das pessoas livres e feudatárias e aquele dos escravos: toda nobreza consistia na posse de feudos”.
Era um tipo de organização que lembra muito as máfias atuais, pois estas também são familiares, “concedem” que seus membros explorem uma “atividade econômica”, exigem que jurem fidelidade, que prestem “serviços” e têm ainda a violência como garantidora de que tudo caminhe dentro de seu “código de honra”. Mas com uma diferença importante: enquanto as máfias de hoje existem à sombra de um Estado de direito, mais exatamente onde este falha, a nobreza latifundiária não possuía o guarda-chuva de impérios ou nações sobre suas cabeças.
A superioridade desses senhores, para começarmos a falar em superioridade, não tinha nada da estabilidade institucional que conhecemos nos dias de hoje. Era baseada apenas na força. Sabiam dos riscos que corriam. Golpes por meio de complôs, traições e expedientes baixos como os envenenamentos eram comuns e considerados válidos em meio à violência em que viviam. Honra, como direito ao respeito da sociedade, ficava condicionada a algo bem simples e direto: vencer e dominar com mão de ferro. Enquanto venciam, eram bons chefes, exerciam um poder irrestrito e eram senhores admirados e honrados.
Os reis, supostamente no topo da pirâmide, não eram líderes isolados como se veria mais tarde no absolutismo. Eram algo como “primus inter pares” (primeiro entre iguais). Não eram muito mais que seus vassalos que podiam ter tanto ou mais riquezas e poder efetivo que eles. Um bom rei era aquele que unia seus nobres e que se mostrava astuto em estratégias para bem conduzir os saques e as guerras. Mas como todos os outros nobres, vivia sob constante ameaça e a encarar traições em sua corte ou família. Esse modelo celular reproduzia-se hierarquia abaixo até o proprietário mais humilde.
Para usarmos uma expressão atual, podemos dizer que eram todos muito “orientados a resultados” e sua liderança, ainda que reforçada pelo carisma, tão frequente nos líderes, era ao final das contas baseada francamente na coerção. Isso torna interessante questionar como o poder, com bases tão objetivas, foi se cristalizando em algo intangível, hereditário e identificado com características tão distantes de seu fundamento inicial.
Ainda no Tratado da nobreza, lemos logo no prefácio uma definição que não parece ter relação com o espírito guerreiro que dominou o início da Idade Média: “A nobreza é uma qualidade que rende generoso aquele que a possui e que secretamente dispõe a alma ao amor das coisas honestas. É a virtude dos ancestrais que imprime a excelência da nobreza. Não sei que força há nas sementes, não sei que princípio transmitem, que estas inclinações continuam do pai aos seus descendentes. Todo homem saído dos grandes e ilustres personagens sente no fundo do coração certo movimento que o leva a imitá-los e o solicita à glória e às belas ações”.
Nessa definição, o ser nobre não é mais tratado apenas como resultado da ação, do sucesso atual, transitório e aplicável a qualquer um que se saia bem nas armas (condição que de fato só se afirma, obviamente, a posteriori), mas passa a ser uma substância perene que unge esse sujeito, que nasce com ele, coloca-o em um plano superior ao de seus semelhantes e o inclina à virtude. “Ainda que os homens sejam universalmente da mesma espécie e da mesma condição dentro dos princípios da natureza, existem, no entanto, entre eles, certas vantagens particulares que servem para distingui-los dentro da sociedade civil.” Vemos nessa citação do Tratado que a superioridade é colocada como um princípio do social, enquanto a igualdade, ainda que admitida, restringe-se ao domínio da natureza.
Mas é importante igualmente observar que, apesar dessa transmissibilidade do ser nobre, que faz com que seus descendentes já nasçam superiores a seus semelhantes, essa condição pode ser perdida pela má conduta. Também no Tratado lemos: “Mas se por negligência ou por baixeza pessoais, acontece que ele [o nobre] não responda à esperança que a grandiosidade de seus antepassados ensejavam para sua conduta, então o brilho da reputação que possuía desde o momento de seu nascimento, e que o acompanhou, apesar dele, por toda sua vida, servirá apenas para sua vergonha e para realçar seus defeitos, como que a aumentar e justificar o desprezo que teremos pela sua pessoa”.
Se as qualidades ou “vantagens particulares” presentes nos nobres tiveram sua raiz em um passado guerreiro, glorioso e violento, a mesma matriz pode ser rastreada etimologicamente nos “ruturiers”, seu contrário, pois o termo, do francês, que designa os não nobres, tem sua origem em “déroute”, termo militar que se refere à derrota, à fuga de tropas que abandonam o campo de batalha. A “ruture” é o oposto da “noblesse” e é a marca dos “inferiores”, dos perdedores, estando ligada diretamente ao conceito de servidão ou escravidão.
Foi uma prática muito comum no mundo antigo, que persistiu até recentemente em algumas regiões, destinar os prisioneiros de guerra ao trabalho forçado em diversas formas e arranjos, dos quais o mais abjeto é, sem dúvida, a escravidão, na qual o indivíduo é tratado como “coisa” ao dispor de seu proprietário. O servo, embora preso à sua condição e à terra, já tem a prerrogativa de ser tratado como um indivíduo, como um ser humano, ainda que desqualificado.
Os ruturiers também faziam “linhagem” e passavam sua condição aos descendentes. Era também uma marca, uma inclinação natural à baixeza. A diferença é que, enquanto os descendentes bem-nascidos procuravam registrar, preservar e documentar sua ascendência edificante, obviamente aqueles de ascensão desqualificada não se preocupavam em legitimar ou provar sua condição. Já era mau o bastante carregá-la.
Mas é muito interessante como, na Idade Média tardia, provar a ausência de “ruture” já habilitava alguém a reivindicar uma posição nobre. Isso enfraquece de certa forma a positividade com que De La Rocque define a nobreza. Aquele que não tivesse máculas não precisaria necessariamente mostrar grandes virtudes. Lemos ainda no mesmo Tratado que, além da nobreza de linhagem comprovada até certo número de gerações ou remontando aos grandes senhores feudais, havia também a nobreza que podia ser reivindicada pela simples ausência de ruture. Estes eram referidos como “gentilhommes”: “aqueles cuja linhagem é de pessoas livres de todos os tempos e que jamais estiveram sujeitos à servidão”.
Se, até onde fosse possível verificar, a família vivera nobremente, mesmo que não tivesse grandes feitos militares, brasões, nomes nas igrejas, túmulos pomposos, responsabilidades importantes, a suposta ausência da mancha da ruture, de atividades de comércio ou artesanato, por exemplo, já assegurava o direito à noblesse. “Ingênuos” era um termo que também se aplicava a esse tipo de nobreza e vemos que dá bem o tom de certa pureza ou simples ausência de algo que os desabonasse.
Mas o que significava, afinal, ser nobre no final da Idade Média? Qual era o “pacote de benefícios” que se outorgava a seus portadores? As vantagens eram muitas. Vou me servir ainda do Tratado de De La Rocque. Os nobres eram os únicos a receber propriedades e terras para explorar em proveito próprio e não precisavam pagar impostos sobre o que produziam. Cargos públicos em embaixadas e outros postos relativos à administração da corte e seus negócios eram também alocados apenas aos nobres. Não menos importante, as honrarias, admiração e respeito, a participação em festas, eventos, torneios, comitivas, conselhos, missões estrangeiras para acordos e negócios, isso tudo ficava apenas nas mãos da nobreza.
Dito isso, é preciso acrescentar que de época para época, de lugar a lugar, muitas variações sobre esses temas foram observadas. Uma delas, muito importante, é que esses comissionamentos não eram, a princípio, hereditários, mas ao longo do tempo passaram a ser. Outra observação é que tudo era muito regulamentado e desde as vestes que podiam ou deviam usar, passando pelo direito ou não de ostentar um brasão de família, até o escopo de cada direito ou dever com seus mínimos detalhes eram formalmente amparados em todas as principais cortes da Europa. A partir de um início tosco e visando apenas ao sucesso militar e econômico, em que cada um era apenas guerreiro ou agricultor, nobre ou servo, houve uma burocratização para uma vida muito protocolar e minuciosamente construída.
A partir do século XIV, com o crescimento das cidades, com a afluência da burguesia, com o enriquecimento e fortalecimento dos reis devido à extensão de seus reinados, com o aperfeiçoamento dos sistemas de coleta e, mais, com o advento da peste negra e muitas guerras que reduziram à metade a população da Europa, surgiu um novo tempo precisando de novas soluções. Houve demanda para o preenchimento de cargos. Posições antes de pouca expressão, como tesoureiros e advogados, tornaram-se chave e demandavam talentos mais refinados. Burgueses tornaram-se mais poderosos como financiadores nessa nova sociedade. O resultado de tais transformações foi a necessidade de mais nobres para atender ao aparato administrativo. Mais famílias, não necessariamente de passado glorioso, sentiram-se merecedoras, sentiram a oportunidade para gozar do prestígio e dos benefícios que até então só os nobres de sangue possuíam. Iniciou-se, assim, um movimento de “nobilização” dessas famílias.
O processo tornou-se mais formal e regras de qualificação, provas, documentos, testemunhas passaram a ser requeridos para legitimar um ato oficial, assinado pelo rei, distribuindo títulos de nobreza. Vendiam-se títulos para gerar caixa para a coroa e davam-se títulos para agradar a alguém querido ou muito recomendado por outro alguém com quem se queria manter um bom relacionamento. De La Rocque escreve que o rei Charles IX, da França, criou doze nobres por edital em 1564 e fez ainda uma criação de trinta em 1568; Henrique III criou mil, também por edital, em 1588. Emitiram-se títulos em branco para preenchimento posterior dos nomes. Eram nobilizados tanto pessoas laicas como membros do clero. Houve também um mercado negro de títulos falsos e, para não encompridar muito a lista, bizarramente, algumas pessoas foram nobilizadas contra sua vontade; foi o caso de um comerciante de carnes muito rico, chamado Richard Graindorge, da Normandia, que em 1577 recebeu o título e a conta para pagar por força de um édito que ele não solicitou nem desejava.
É comum a lembrança de que os nobres não trabalhavam, não podiam trabalhar. Existe até um verbo, “déroger”, que era usado no sentido de fazer perder o direito à nobreza aquele que se dedicasse às artes vis, mecânicas, manuais e ao comércio de varejo, entre outros possíveis atos desonrosos. A imagem que ilustra este post mostra o brasão dos Bourbons ao centro e nas bandeirolas dos dois anjos, com as famosas flores de lis. A frase em latim “Lilia non laborant neque nent” é uma citação de Mateus 6:28, na qual lemos o seguinte: “E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam”. Parece uma ironia. A passagem nos exorta a não procurar a fortuna material, a não colocar nossas necessidades mundanas à frente da busca da salvação da alma, a não buscar as riquezas, nem o acúmulo e até mesmo o que beber, comer ou vestir. Transposta para o brasão da família real, o conselho para que sigamos o exemplo das flores que não trabalham nem fiam fica parecendo uma provocação. O passado guerreiro e conquistador, podemos dizer o ethos “caçador”, de toda essa nobreza realmente via com muita reserva o trabalho repetitivo e disciplinado como meio de vida.
Mas o fato é que, depois do século XIV e acentuando-se muito até a Revolução Francesa, entre os muitos milhares de novos nobres (foram vinte mil apenas com Luís XIV), uma boa parte deles era realmente recrutada para trabalhar em serviços administrativos, pois os nobres de capa e espada, os da tradição militarista, não tinham competência nem pendor para cuidar dos negócios cada vez mais complexos da coroa. Creio que podemos ficar com uma imagem semelhante à dos cargos de confiança, da distribuição de postos nas empresas estatais e da classe política de um modo geral em nossos dias. Se você disser que eles não trabalham será certamente uma afirmação verdadeira, mas apenas em parte. Existem, sim, os que apenas recebem salários e benefícios, mas seria o colapso total se isso fosse unanimidade. Tanto é fato que trabalhavam que alguns títulos de nobreza até incluíam cláusulas explícitas de que o agraciado poderia dedicar-se a atividades proibidas sem déroger. Há todo um capítulo no mencionado Tratado da nobreza falando sobre a nobilização dos burgueses.
Essa situação criou uma crise de valores e muitos debates ferozes. A nobreza antiga desconsiderava, desprezava os recém-nobilizados, que, por sua vez, defendiam que seria mais digno ser nobre pelos próprios méritos do que apenas por nascimento. Mas quando se examinavam, em muitos casos, quais teriam sido esses “méritos”, ficava evidente que eles não eram sempre tão edificantes. Com frequência era apenas um jogo de favorecimentos e mesmo corrupção, como o apadrinhamento e o nepotismo de nossa vida republicana atual. Apenas o passado distante, fundador, parecia ainda ter o brilho da inocência e dos valores autênticos.
Em seu livro A ciência heroica, de 1644, Marc de Vulson de la Colombière fala dessa transição: “Entre os antigos, a verdadeira nobreza consistia pura e simplesmente na virtude que torna sempre nobre aquele que a possui; quaisquer que sejam seus antecedentes, coloca-o acima dos outros homens, como a natureza que fez os diamantes melhores que as pedras comuns. […] No entanto, como todas as coisas têm suas revoluções e suas mudanças, a passagem do tempo levou a que não se faça mais em nossos séculos da mesma maneira que se fazia naqueles do tempo passado. A nobreza, que não era mais que pessoal, tornou-se no presente hereditária e transmissível de pai para filho”.
Vemos claramente que, para La Colombière, a verdadeira nobreza se conquista, não se recebe. Além disso, nem todas as virtudes são iguais, uma dentre elas é a mais digna. Lemos ainda em A ciência heroica: “Essa nobreza de sangue não tem portanto seu início nem seu fundamento sobre outra base que a virtude e sobre os fatos heroicos pelos quais são honrados [os nobilizados] pelos reis e pelos príncipes. São muitas as maneiras para adquiri-la, a saber: pelo valor, pelas ciências, pelas riquezas, pelos costumes de alguns lugares. Mas como a primeira, a qual chamamos a Militar, adquire-se com maior pena, maior perigo e maior glória; também é ela, sem comparação, a mais amada e a mais estimada, pois procedendo da coragem e do valor, que são as mais altas qualidades que pode ter um homem, particularmente um guerreiro, e ainda sendo aquela que faz recompensar mais fortemente aquele que as possui e as exerce, ela deve, por infalível consequência, ser preferida às outras”.
Acontece que, com a adoção das armas de fogo, iniciada no século XIV e que já era fato mais que consumado ao tempo de La Colombière, reis, príncipes e seus nobres de alta ou baixa linhagem afastaram-se muito da linha de frente nas guerras. A habilidade e o equipamento tornavam um cavaleiro dos séculos anteriores praticamente imbatível por um inimigo sem os mesmos recursos. Considerando-se que eles eram uma minoria em qualquer conflito, pois armaduras, cavalos e todo o aparato de um nobre guerreiro eram muito caros e reservados a pessoas de alta linhagem, podemos dizer que essa tecnologia de certa forma elitizava ou estratificava as guerras. Com o mosquete, tudo mudou, os confrontos democratizaram-se e qualquer um podia matar qualquer um até sem muito treino ou bravura. O valor do cavaleiro medieval ficou muito relativizado e a guerra perdeu a pompa ou o romantismo que outrora tivera. A nobreza mais tradicional viu esvaziar-se o próprio fundamento de seu valor em uma nova sociedade na qual sua querida espada foi ficando obsoleta. Por outro lado, os novos nobres, sem muito comprometimento com brasões e bravura de antepassados distantes, logo perceberam que a virtude agora era outra. Não tardou para que a própria monarquia, sistema totalmente tributário dessa concepção cavaleiresca do mundo, fosse substituída pelo Estado moderno e democrático.
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É muito complicado falar em superioridade de uma pessoa em relação a outra ou de um grupo em relação a outro. Nosso modo de pensar hoje proíbe esse tipo de colocação. No entanto, para lidarmos com situações em que ela é professada, caso da nobreza, caso do preconceito, é preciso que tenhamos algum modelo de como ela funciona. Não adianta dizer que superioridade não existe. A restrição a seu uso tem provavelmente como alvo um tipo especial de superioridade. Trata-se daquela que se quer intrínseca ao sujeito e o coloca mesmo ao abrigo da possibilidade de que suas ações e pendores sejam verificados ou questionados. Para assumir essa forma, ela é conectada a algum atributo objetivo, porém meramente convencional, como um papel assinado pelo rei que diz que fulano é um barão. Esse não é, por si só, um atributo diretamente ligado ou comprobatório de virtudes morais. No entanto, do fato indisputável de que ele tem o título, espera-se inferir que ele seja uma pessoa honesta, virtuosa e digna de nossa confiança. Esse ser superior fica apto a comandar, receber e gozar de muitos benefícios como prêmio por sua excelência.
Existe outro tipo de superioridade que é não uma inferência a partir de indícios convencionais, mas uma observação e conformação a fatos muito evidentes e inescapáveis. Este é o caso da superioridade que se instaura pelo poder que atenta à integridade física das pessoas e é conhecida como “lei do mais forte”. Essa superioridade é muito mais volátil e pode ser perdida de um instante a outro. Talvez fosse até melhor tirar proveito do uso da língua portuguesa, que diferencia “ser” e “estar”, para dizermos que nestes casos a pessoa “está” superior e não que ela “é” superior a outra.
Acredito que possamos dizer que todos temos grande atração por fazer essa transição da superioridade volúvel para o outro tipo que é mais estável e pouco exigente em termos de ser atualizado a todo o instante com demonstrações explícitas de suas justificativas. As duas são reais no sentido de que são aceitas e funcionam em sociedade. A primeira é, no entanto, mais direta, enquanto a segunda é simbólica e, dessa forma, dependente de convenções.
O percurso da nobreza europeia, esboçado acima, talvez possa ser visto como algo que em seu início teria mais as características de uma superioridade crua, agressiva, na qual seus protagonistas impunham-se pelas próprias mãos. Lentamente, os detentores desse poder foram se aparelhando de um repertório simbólico que logrou fazer uma transposição do conteúdo dessa superioridade, que era o efetivo uso da força, para o porte dos tais símbolos e narrativas desse imaginário. A partir daí, a distribuição desses símbolos, por herança ou por outorga, conferia real superioridade àqueles que os recebiam e os ostentavam, mesmo àqueles que não eram mais conformes aos fundamentos das virtudes que supostamente esses símbolos atestavam. Os éditos reais, os códigos de vestimentas, bandeiras, brasões, cores, ícones, cerimônias, modos de andar, de saudar, de portar os objetos, de endereçar-se às pessoas, de falar… tudo era muito minuciosamente predeterminado, tinha significado e posicionava cada indivíduo dentro de uma hierarquia e de um papel na sociedade.
Essa transição de uma superioridade de fato para uma superioridade fortemente simbólica tem um aspecto que precisa ainda ser citado. É muito importante que o conjunto de convenções indicadoras de superioridade seja assumido pelo conjunto da sociedade, incluindo aí aqueles que não as possuem. Os ideais da cavalaria exerciam fascínio e eram louvados por todos, ou seja, mesmo aqueles que eram amplamente desfavorecidos por esse sistema simbólico compartilhavam seus valores. Se não fosse assim, seria a guerra civil ininterrupta. É verdade que foram muitos os levantes populares contra taxas, tiranos e abusos; verdade ainda que os nobres nunca foram ingênuos a ponto de confiarem apenas em sua pompa sedutora para chegar a se desinvestir de real poder de coerção — em vez disso, aparelhavam-se e respondiam com energia a qualquer tentativa de questionamento. Mas de um modo geral, o sistema era aceito ainda que imposto. A simples existência de uma sociedade, como tal, já é evidência de que um sistema de valores nela é compartilhado. Não há provavelmente força de policiamento ou opressão que, no longo prazo, estabilize agrupamentos de pessoas que não respondam a essa condição.
O preconceito parece ter uma relação íntima com esse mecanismo de inferir qualidades a partir de convenções. São atributos avulsos, superficiais, que assumimos como provas de verdades objetivas. São julgamentos a partir de evidências que podem nem ter relação com o cerne daquilo que estamos inferindo. A grande questão é se uma sociedade complexa, que não viva mais apenas segundo a lei do mais forte, conseguiria privar-se desses mecanismos, desses repositórios simbólicos como orientação e modo de ver de seus membros. Acredito que não. Enquanto a selvageria sanguinária se evidencia de si mesma, as virtudes e os dons morais só se expressam simbolicamente. Instaura-se aí uma luta ideológica pela posse desses símbolos entre indivíduos, grupos, países, culturas, etnias… e esta talvez seja apenas uma forma mais complicada de ser selvagem, condição da qual parece que ainda não conseguimos escapar.
Referências