Texto de 1894, descreve detalhadamente o processo inquisitorial de Vila-Real. Encontra-se online nas páginas de Arlindo Correa. Trata-se do texto original, atualizado na ortografia (mantida a pontuação) e acompanhado de uma introdução e muitas notas que auxiliam a compreensão e adicionam ao contexto.
Está em duas páginas e pode ser encontrado nos links abaixo:
Artigo versa sobre as conversões forçadas, e início do marranismo, que tiveram lugar na hoje Espanha, logo após a conversão dos visigóticos ao cristianismo nos últimos anos do século VI. É muito interessante pelo paralelismo de motivações e métodos com o que aconteceria mil anos mais tarde novamente na península Ibérica.
Renata Rozental Sancovsky: Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Realizou estudos pós-doutorais em Arqueologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Texto obrigatório. Max Weber (1864 – 1920) analisa como a ética protestante trouxe para fora dos mosteiros e conventos a ideia de “trabalho” e vida regrada, até austera, como instrumentos de desenvolvimento espiritual do cristão. Conciliou assim religião e enriquecimento colocando este último como sinal de bem-aventurança. Esta conexão foi fundamental para dar sustentação religiosa à revolução burguesa e expansão do capitalismo na Modernidade.
Pode ser encontrado grátis, em francês, neste link:
Livro fundamental para se entender o esvaziamento da fé católica como parte do processo de formação de uma consciência burguesa vitoriosa pós-revolução. Groethuysen (1880-1946) formou-se em filosofia na Universidade de Berlin e depois realizou uma pesquisa de fôlego nas bibliotecas da França, principalmente em documentos da Igreja, onde colheu e analisou a dissolução de ideias como inferno, pecado e a metamorfose de um Deus incomensurável, imprevisível, soberano, para um Deus domesticado, simbólico e replicador das leis humanas.
Edição da Gallimard publicado pela primeira vez em 1927
Catálogo de exposição no Centro Cultural Banco do Brasil em 2008. Explora as diversas culturas que formaram e influenciaram a sociedade portuguesa. Inicia pelas raízes pré-históricas e vem até os descobrimentos marítimos.
São dois volumes, o reproduzido acima contém textos e o outro apresenta fotos dos objetos expostos. Os autores dos textos são:
Luís Raposo,
Maria Conceição Lopes,
Santiago Macias,
Cláudio Torres,
José Custódio Vieira da Silva e Joana Ramôa,
Maria José Ferro Tavares,
Jorge Couto e
Ivo Castro
Livro não é do tipo a satisfazer a curiosidade mórbida pelas torturas e abusos da Inquisição. Também não é carregado de acusações contra a Igreja. Em vez disso é uma obra séria que analisa a criação do Santo Ofício como instrumento para manter a unidade da cristandade, quando esta corria o risco de fragmentação em variantes que classificou como heresias. Detalha o funcionamento dos processos, execuções e participação do poder temporal. Divide em duas fases a história da instituição, sendo a primeira basicamente contra as heresias Vaudois e Catar, e um prolongamento que seria o de “caça às bruxas” no final do século XV. Não entra na questão da Inquisição estabelecida na Península Ibérica no século seguinte.
Editado por Livre de Poche com ISBN: 978-2-253-15658-1
Autor apresenta a história da perseguição aos Cristãos-novos enfatizando os aspectos de interesse econômicos nos confiscos que as condenações ensejavam. Argumenta ainda que a miscigenação dos Cristãos-novos entre os Cristãos-velhos e eventual desaparecimento da distinção/cristianização dos descendentes de judeus, posta em marcha pelas leis manuelinas, foi ironicamente interrompida pelo advento da Inquisição cujo propósito seria eliminar o judaísmo do reino. Obra bem fundamentada, possui muitas referências a outros livros, estudos e documentos.
Publicada por Editorial Inova Limitada, faz parte de uma coleção “Civilização Portuguesa”. Esta é a terceira edição de 1969.
Uma análise da perseguição realizada pela Inquisição, junto com a Coroa Portuguesa, aos judeus forçados à conversão ao cristianismo. É parte de um estudo em andamento sobre preconceito e racismo.
Portugal ao tempo das colônias
Portugal era uma nação, no século XV, sem recursos para viver à altura de seus ideais. Isso era mais ou menos geral na Europa que ia dando adeus ao Medievo – mas em Portugal, a situação tornara-se insustentável. Enquanto que países mais centrais como que preparavam sua transição para a Idade Moderna, Portugal, e também a Espanha, insistiam em manter tudo como sempre fora e buscavam meios para manter sua estrutura de poder apoiada no binômio clero e aristocracia.
A elite portuguesa foi teimosa e desastrosa em querer obstinadamente sustentar uma pureza aristocrática, contrária ao mercantilismo e às atividades manufatureiras, quando essas eram justamente as novas fontes de poder no arranjo mundial que se orquestrava. Viveu a contradição de precisar das atividades que condenava e tentar solucionar o conflito como que terceirizando seu próprio sustento, como veremos a seguir.
Uma evidência desse pendor para perseverar nos ideais da cavalaria é a diferença no interesse que despertavam África/Índias, comparadas ao Brasil, como destino de suas empreitadas. Embora ao final fosse o comércio o grande motivador, para África e Índia havia um aspecto militarista, conquistador, que dava um brilho especial a tais destinações. Tratava-se de fortalezas a erigir, portos e rotas a controlar em cidades milenares com as quais podiam fazer comércio e pilhar seus tesouros. Os filhos segundos da fidalguia portuguesa, sem herança, viam como boa possibilidade a carreira militar nessas terras. Por atos de bravura e conquistas interessantes para a coroa, um jovem aventureiro poderia receber uma comenda, uma tença, de modo que, uma vez de volta à querida Portugal, teria o futuro garantido sem ter que sujar as mãos com trabalho no comércio, serviços ou manufatura. Por outro lado, vir para o Brasil, no meio do nada, para começar uma empresa açucareira, deixar a espada e o mosquete para tornar-se um produtor agrícola, um fazendeiro? Não, isso ninguém queria. Isso estava muito longe do viver nobremente.
Ilustrativo dessa mentalidade é o comentário de Antonio Gonçalves Dias (1823 – 1864), introdução a uma edição dos Annaes de Berredo, citado no Jornal de Timon: “Dos portuguezes vinham para o Brazil só os que não tinham suficiente coragem para se lançarem sobre a Asia e Africa, cujos campos, cujas cidades, cujos imperios tantas vezes repetiram com terror o nome portuguez. Foi esta a rasão, por que os reis de Portugal tiveram sempre os olhos cravados naquellas partes do Oriente onde a sua gloria se pleiteava, deixando por tanto tempo o Brazil á mercê dos seus deportados e dos seus aventureiros. Para a Ásia e Africa mandava Portugal a flor da sua nobreza, para o Brazil vinha o rebute da sua população; havia excepções, mas estes vinham por engano, como veio Pedro Alvares Cabral. Os de lá adquiriam gloria, os d’aqui lucravam fortuna; aquelles eram heróes, estes commerciantes. De volta á metrópole trocavam-se as partes : os primeiros, que sò podiam mostrar cicatrizes, morriam nos hospitaes; os segundos, que só tinham fortuna, construíam palácios. Como pois não haviam de buscar o Oriente as almas grandes de Portugal, que as houve sempre, e muitas : e como não haviam as almas interesseiras de afluir para onde se descolariam minas de ouro e diamantes? Eis porque as primeiras paginas da historia do Brazil estão alastradas de sangue, mas de sangue innocente, vilmente derramado! O único motivo de quasi todos os factos que aqui se praticaram durante três grandes séculos foi a cubiça ; cubiça infrene, insaciável, que não bastavam fartar os fructos de uma terra virgem, a producão abundantíssima do mais fértil clima do universo, as mais copiosas minas de metaes e pedras preciosas”.
Com uma boa dose de estilo e romantismo, esse resumo das motivações e prêmios reservados aos que se arriscavam nas terras de além mar, mostra claramente o conflito que existia entre um ideal cavaleiresco, entre o “herói” buscando a sua “glória” e a mediocridade dos “comerciantes” com a vida dedicada ao lucro e ao fazer fortuna, à “cubiça, infrene e insaciável”.
Ser nobre fora por muitos séculos na Europa possuir e/ou taxar terras produtivas, fazer guerras lucrativas e arranjar, através de casamentos bem planejados, para que as fortunas não se dispersassem e seguissem com aqueles que melhor se sairiam nesse sistema. Não era uma sociedade voltada para uma ideia de progresso através do trabalho e produtividade. Um casal tinha como foco e esperança fazer um único herdeiro e uma única filha com um dote razoável para atrair um marido promissor. Os outros filhos tinham que procurar por onde sobreviver e as carreiras eclesiástica ou militar para os homens, e conventos para as mulheres, eram algo como que as saídas padrão. Produzir, no sentido de empreender uma atividade manufatureira que deixe lucro no fim da linha, ou fazer comércio, ou lidar com finanças, também no intento de produzir riquezas, era algo que não fazia parte das atividades dignas na visão da aristocracia europeia.
Foi lenta e penosa a transição para o mundo que conhecemos hoje em que o trabalho e o empreendedorismo são atividades respeitáveis, louváveis, para as quais ironicamente até podemos usar o termo “nobre”, quando sempre foram justamente o inverso do ser nobre.
O perturbador burguês
No norte da Europa, protestante, a ideia de trabalho como essência da vida na Terra, como vocação e obrigação do temente a Deus, veio recebendo desde o final da Idade Média uma base filosófica e religiosa muito sólida que se confirmou com a Reforma Protestante. Max Weber salientou, em seu texto Ética Protestante e o espírito do capitalismo como o “trabalho é o remédio específico a empregar a título preventivo contra todas as tentações que o puritanismo reuniu sob o termo ‘vida impura’ e seu papel não é pequeno”. Para Weber é como se o protestantismo tivesse recuperado a virtude purificadora do trabalho, papel a ele assinalado vida dos monges e dos santos, com disciplina e abnegação, e a tivesse trazido para fora dos mosteiros e conventos para o cotidiano dos fiéis. O trabalho, aliado a uma vida austera e regrada, precisava ser abraçado com fervor. Essa mudança de eixo foi o mecanismo encontrado pela burguesia para conferir dignidade a seu modo de vida em países protestantes. Antes disso, dignidade e honra eram sinônimos de poder, e poder se conquistava com a espada.
A nova maneira de ser cristão, que se consolidou com Calvino e Lutero, harmonizava-se perfeitamente com as transformações políticas que se seguiram, com a centralização e profissionalização da polícia e do exército, com a criação de um sistema judiciário, com o desarmamento dos cidadãos, enfim, com o monopólio do uso da força pelo Estado, pelo então concomitantemente criado Estado Moderno.
Mas Portugal era católico e a resistência de suas lideranças a admitir a entrada desses novos valores foi tenaz. No catolicismo toda ideia de enriquecimento era vista como perturbação da ordem divina. Nessa visão, a vida aqui na Terra é apenas uma provação, uma condição dada por Deus e que o fiel deve suportar com resiliente obediência como caminho para a sua salvação. Uma pessoa agindo para enriquecer e acumular, trabalhando, tendo ganhos de capital ou comércio, aumentando “artificialmente” o seu conforto e patrimônio, seria um ato de desafio e arrogância contra a vontade de Deus. Seria como burlar a prova a que Ele a submeteu em uma aberta discordância com o lugar que Ele lhe reservou.
No pensamento aristocrático a ganância também existe, e até em grande medida, mas ela se exprime através das guerras e mesmo em disputas políticas internas, sempre contra a figura de um “inimigo”. Tinge-se assim de uma outra tonalidade, diferente da arrogância autodeterminante do trabalhador. As guerras, brigas e duelos têm um componente de risco sempre muito alto. Como não se admitia a ideia de acaso, o resultado era sempre considerado a expressão da vontade de Deus. O vencedor seria sempre um abençoado e o perdedor um representante do mal. Esse aspecto de jogo, presente em todo combate, nos quais em teoria a sorte, ou a providência, pode sempre virar e surpreender, é examinado por Johan Huizinga em seu clássico Homo Ludens. Ele observou que o aspecto lúdico, como parte essencial dos conflitos armados, legitima o vencedor como um escolhido, como se forças superiores houvessem intercedido em seu favor. A sua coragem em colocar sua vida à prova, nas mãos de Deus, em prol de sua fé, de sua linhagem, de seu reino, de seus súditos, dos humildes camponeses de suas possessões é a quintessência da sua grandeza de alma e de seu valoroso espírito cavaleiresco. Esse protótipo do herói violento ainda encontra muito eco mesmo em nossa vida contemporânea. Basta observar as séries e grandes sucessos do cinema para confirmar como ainda são valorizados.
Isso é totalmente diferente do sujeito que sabe que se fizer mais metros de pano com a mesma quantidade fio, ou em menor tempo, poderá realizar um lucro maior e poderá assim acumular uns quinhões a mais e por essa astúcia acumular uma pequena ou grande fortuna ao final de alguns anos. É diferente também daquele que irá financiar uma empreitada comercial e ganhar dividendos sobre a margem realizada. Nesses casos, o aparente domínio do fato dava, sob a ótica dos valores medievais, o aspecto de uma ganância deplorável, totalmente condenável, qualquer tipo de autodeterminação era visto como potencialmente herege, simplesmente por ousar prescindir da intervenção divina da qual todo guerreiro, por mais forte e valoroso que fosse, implicitamente dependia.
A burguesia que não encontrou no Protestantismo uma forma de se conciliar com o cristianismo distanciou-se da fé católica. Sem negá-la, relegou-a a um distante segundo plano e conferiu a Deus um papel figurativo em suas vidas. Esse processo é brilhantemente analisado e fartamente documentado, por Bernard Groethuysen (1880-1946) em Origens do Pensamento Burguês na França. O que vale aqui resgatar de sua pesquisa é como a ordem universal, segundo a entendia a igreja católica, se expressava de modo fechado, completo e harmonioso sem lugar para a figura do burguês. A Igreja propagava uma veemente condenação ao trabalho que visasse a prosperidade e o acúmulo, que fosse além da subsistência, como modo de vida. Esse entendimento é a chave para se compreender o horror que a vida de colono desbravador, lavrador, empreendedor arrivista em terras distantes do Brasil, podia inspirar na elite portuguesa e o por que, então, de sua preferência pelas Índias.
Groethuysen foi buscar nas predicações dos representantes da igreja romana a forma como uma concepção de mundo era moldada para conciliar as desigualdades entre os grandes e os miseráveis sem colocar em questão a sabedoria e infinita bondade de Deus.
Hoje é praticamente impossível pensar, comentar, descrever tal arranjo sem deixar passar uma ponta de sarcasmo e condenação. Inescapavelmente escorrega para dentro do discurso a noção de que era tudo fabricado para garantir o conforto dos ricos via exploração dos pobres. Principalmente se pensarmos que a cúpula do clero vinha toda igualmente das boas famílias. Mas teremos uma compreensão caricata, não penetraremos no espírito dessa época, se não levarmos realmente a sério o fato de que viviam, no fundo de suas almas, essa construção. Descrentes que somos dos mistérios da religião, habituados a uma versão pasteurizada da alteridade, temos um bloqueio a admitir e somos em geral debilitados para compreender o temor e a fé de um autêntico cristão. Mas aqueles que nas missas ainda respiravam os aromas do incensório e tinham a visão turva por entre a fumaça que filtrava a luz multicolorida do clerestório, enquanto o coral fazia o contraponto com os pesadíssimos baixos do órgão, esses choravam como crianças nos sermões dominicais, acreditavam na ordem divina, acreditavam na dualidade corpo e alma, eles tinham um medo real do demônio e acreditavam no inferno como destino certo dos infiéis. Sobretudo, não conheciam outra forma de conceber o mundo a não ser essa. Ainda que conveniente para os poderosos, guardadas as poucas exceções entre mundanos e intelectuais de tradições materialistas, todos viviam sinceramente o que para nós hoje parece apenas folclórica superstição.
Quando a pura conveniência material é amparada por uma ordem transcendental, o sujeito sinceramente apaga por completo o quanto a conveniência pesa nas suas convicções. É preciso imaginar aristocracia e alto clero daquela época como algo mais que apenas um bando de espertalhões. Se enganavam os miseráveis, enganavam a si próprios também.
Groethuysen cita Massillon em um sermão em que ele fala aos descendentes das famílias ilustres: “Sim, meus irmãos, não foi o acaso que os fez nascer grandes e poderosos. Deus, desde o início dos séculos, vos destinou a essa glória temporal, marcados da chancela de sua grandeza e separados da turba pelo brilho dos títulos e das distinções humanas”. A riqueza e o poder dos nobres teria então uma origem transcendente, dada e abençoada por Deus. A origem remota desta condição, conhecida apenas através dos símbolos da aristocracia, das narrativas dos grandes feitos e ratificada pela riqueza presente, validava a elite ligando-a a um passado mítico de super homens, super ancestrais, que na cultura popular eram como que semi deuses.
Os pobres, sem linhagem, e sem recursos, carregam sua condição igualmente pela vontade divina. Neles não há nada que lembre alguma aura transcendente. Eles são pura e verdadeiramente humanos e estão neste mundo para sofrer e assim conquistar a salvação eterna. São os amados filhos de Deus e, como seu amado filho Jesus Cristo, carregam cada um a sua cruz e devem perseverar na fé, aceitar seu destino e suportar todas as vicissitudes de suas vidas com amor e retidão.
É evidente que a bondade e a sabedoria divina, vista dessa forma, parece pouco defensável em qualquer padrão de justiça que se queira adotar. Mas a escrita certa por linhas tortas se arranja quando se pondera que o reino dos céus já é dos pobres. A eles está garantido como que por direito. Gozam da invejável condição de “pré-aprovados”. Tudo que eles têm a fazer é viver piedosamente pois já são os escolhidos. Suportar a pobreza é sua última prova.
Já o fidalgo rico, ele tem um papel a cumprir e sua salvação depende do seu desempenho nessa função. Citando Groethuysen, quando ele trás um sermão de um predicador do século XVII: “Assim Deus não fez os ricos para eles mesmos, mas para os pobres. ‘Pois não vos enganem cristãos – diz o Pai Bourdaloue, dirigindo-se aos ricos – convencendo-se que vocês são ricos para si próprios … Vós sois ricos , mas para quem? Para os pobres…‘ Deus o quis assim. ‘O que Ele pretendeu e o que pretende ainda? Que vós sejais os substitutos, os ministros, os colaboradores de sua providência com relação aos pobres“.
Os nobres receberam então de Deus poder temporal e riquezas para que socorram os pobres na sua travessia e não os deixem sucumbir pelo peso de seus sofrimentos. São os prepostos de Deus aqui na Terra e desempenham uma espécie de assistência social. Por isso devem inspirar respeito e admiração enquanto exercem sua bondade para com os desfavorecidos. Aqueles que, sendo ricos, sucumbem ao vício e à avareza cairão em perdição. O rico deve ser, sempre restando rico, generoso.
A obrigação da caridade e da esmola fica mais respaldada quando os benevolentes são herdeiros tanto de seus ancestrais diretos como do próprio Deus, pois tal fórmula torna logicamente razoável que assim como eles receberam precisam também doar e socorrer os necessitados. Em incontáveis sermões o pregador enfatizava que a riqueza não era do rico, este era apenas um portador e tinha a obrigação para com Deus de fazer caridade. A igreja era a representante espiritual de Deus, os nobres tinham uma parcela de seu poder que devia ser usado para ajudar e conduzir o rebanho dentro da lei dos homens. A seu modo, como braço Temporal, os ricos também eram pastores dos filhos de Deus aqui na Terra.
O burguês típico não tinha papel nessa narrativa. Ele não tinha ancestralidade, nem glória e nem poder, mas também não precisava de esmolas. Vivia calmamente, com conforto, apenas pelo fruto do seu trabalho e poupança. Sua simples existência já era muito irritante e soava arrogante para a sociedade feudal. O burguês facilmente se convencia que sua riqueza não fora exatamente dada por Deus e podia não estar disposto a ajudar ninguém. Era capaz de poupar, planejar e depender menos da sorte ou providência. Enfim, seu modo de vida era uma ameaça à ordem do mundo como era entendida na tradição da Europa cristã medieval.
Foi por essas vias de pensamento que o trabalho manual, mesmo o artístico, a manufatura e o comércio, em especial o varejo, foram por muito tempo vistos como ocupações totalmente condenáveis. A riqueza advinda do trabalho era uma espécie de trapaça, definitivamente sem valor. Ainda muito pior, eram os ganhos de capital auferidos por gestão de investimentos e empréstimos a juros.
Nobres e fidalgos portugueses
Portugal viveu intensamente essa concepção de mundo. Na época da descoberta do Brasil era uma sociedade doentiamente minuciosa com hierarquias e a distribuição de honras e favores pois esses eram os meios de vida de sua elite temporal e clerical. Existiam os grandes e a gente miúda. Entre os grandes, eram fidalgos os de longa linhagem e nobres aqueles que, embora sem a ancestralidade, viviam nobremente. Os fidalgos não perdiam sua condição pois o eram pelo sangue. Os nobres podiam cair em desgraça se tivessem que trabalhar em ocupações “mecânicas”. Nesse caso perdiam acesso aos benefícios do ser nobre. Eram benefícios tangíveis e intangíveis, de rendas, direitos e honrarias distribuídas pela coroa.
Eventualmente um nobre, já na terceira geração vivendo pelos ideais da cavalaria (sem trabalhar), poderia receber títulos e distinções que o colocariam no mesmo lugar de respeito de um fidalgo. O processo era formal e deveria ser pleiteado ao rei pelo postulante. Na História de Portugal, vol. III, Joaquim Romero Magalhães cita que “um tal Francisco Veloso solicita o hábito de Santiago invocando que vive ‘bem e honradamente’, tem escravos e escravas e moços que o servem, serve ele mesmo ao rei no trato de Guiné e é rico, além disso, não vem de casta de judeus nem de mouros nem anda homiziado. Vive ‘limpamente’ à lei do cavaleiro”. Possuir escravos parecia contar muitos pontos. O mesmo autor coloca que apenas em Lisboa, “em 1551, em 100.000 almas, contavam-se 9.950 escravos. Aproximando-se dos 10% do total de habitantes”.
O comércio poderia ser tolerado mas apenas no atacado e a portas fechadas. Grandes empreendimentos comerciais internacionais, embora não ideais, não inviabilizavam a candidatura. O próprio proponente no exemplo acima, Francisco Veloso, salienta que serve ao rei no “trato de Guiné”. Mas qualquer loja aberta, vendendo no varejo, qualquer fabriquinha, seriam fatais para a rejeição do processo por mais que todos os outros itens estivessem satisfeitos.
Mas além dessas condições basicamente financeiras, de histórico e modo de vida, o postulante precisava também ter uma imagem pública. Isto significava participar dos eventos sociais com dignidade e distinção. Era preciso desfilar, ser visto, representar através de suas maneiras e aparições teatrais, estudadas, ensaiadas, um ideal de luxo e elegância sem nunca resvalar para a vaidade e ostentação, que jamais seriam perdoadas em um bom cristão.
A sociedade toda era rigorosíssima em regras de etiqueta que se declinavam em vestuário, gestos, oratória e observação das tradições e protocolos nas festas religiosas e eventos da corte. Havia uma maneira adequada para cada mínima situação e a obediências desses códigos era o tempo todo observada nos menores detalhes. Era a cor certa para a vestimenta, o pronome correto a se empregar, a ordem certa de servir um banquete, a maneira de andar na rua, de olhar, de cumprimentar alguém de acordo com sua posição e uma infinidade de outros artigos de um código de conduta muito extenso. Isso se aplicava não de maneira individual mas a um conceito de casa, nome ou família. Não era apenas a pessoa do patriarca que se apresentava, era um cortejo que incluía todo o clã até os seus escravos que deveriam todos se apresentar segundo as convenções de respeitabilidade mas com o maior brilho possível.
Satisfazendo essas condições, a família ocupava algum lugar na pirâmide do poder em cujo cume estava o monarca. Era ele que distribuía os títulos, rendimentos ligados ao título, postos de comando militar, representações internacionais, missões diplomáticas, direito de explorar propriedades, rotas comerciais, licenças comerciais, portos, enfim, era o rei distribuía a fidalgos e nobres as riquezas e oportunidades do reino no plano administrativo, político e econômico. Era muito parecido com a distribuição de cargos no governo e empresas estatais como conhecemos hoje. A diferença talvez esteja mais em que explorar esses privilégios em proveito próprio era absolutamente normal, enquanto que hoje além de ser normal também é crime.
O lado às vezes perverso disso tudo é que para almejar uma posição mais alta entre nobres e fidalgos, o pretendente tinha que se apresentar, impressionar e convencer que ele era de fato poderoso e digno de ainda mais altas honrarias. Quanto mais rico, maiores as possibilidades de ser agraciado com uma posição de prestígio maior. Assim era que muita gente se arruinava contraindo dívidas para tentar parecer mais do que de fato era.
No sistema de monarquia feudal, em que o rei precisa se cercar de vassalos que o auxiliem na manutenção da unidade política e administrativa do reino, ele irá sempre procurar ter próximos de si os mais poderosos senhores, pois a sua força é bem a somatória das forças que lhes são leais, incluindo o aí, muito importante, o plano militar.
Uma particularidade bem ilustrativa desse arranjo, vista agora sob o ponto de vista de controle do poder de seus súditos, é o fato de que era o rei que aprovava todos os casamentos na aristocracia. Com isso ele evitava que se formassem alianças muito fortes entre famílias que unidas poderiam vir a ser uma ameaça à própria coroa, pois a coroa era também uma família.
Toda aristocracia Europeia resistiu, em maior ou menor grau, para fazer espaço e dividir poder com o “invasor” burguês. Só que em Portugal vários fatores se somaram para dar uma sobrevida ao sistema arcaico dos fidalgos. Um deles foi o súbito influxo de riquezas com as novas rotas comerciais para as Índias. Isso ajudou demais nas primeiras décadas, quando ainda tinham algum controle desses mercados em função de sua posição geográfica e conhecimentos de navegação algo à frente de seus concorrentes. O outro foi a Igreja Católica através de duas instituições poderosíssimas: A Companhia de Jesus, os Jesuítas, e o Santo Ofício ou Inquisição.
Aquilo que em geral se sabe sobre Inquisição nos vem normalmente de visões muito apaixonadas e sensacionalistas. Ela rendeu boas tramas para a literatura e indústria do cinema e é um tema com o qual os professores de história do ensino médio sempre conseguem obter silêncio e atenção dos alunos. As torturas e abusos são fato comprovado e não podem ser desprezados. Mas há muito mais para se entender sobre os rumos que tomou a história de Portugal e do Brasil se ultrapassarmos esse encantamento e indignação com a violência pura e simples.
Na luta travada entre aristocracia e burguesia em Portugal dos séculos XVI a XVIII houve esse terceiro ator fundamental que foi a Igreja. Ela foi determinante e influente como talvez em nenhuma outra nação, quando de sua passagem do Medievo para a Modernidade. Por isso iremos fazer um pequeno detour e posicionar a Inquisição portuguesa dentro da história dessa instituição. Depois veremos que aspectos particulares ela tomou e assim, com maior embasamento, poderemos finalizar com a emancipação de Portugal com seu passado feudal.
A Inquisição
O Cristianismo foi clandestino até o início do século IV, quando foi pessoalmente adotado e oficialmente tolerado pelo imperador romano Constantino. Mas permaneceu uma religião algo complicada, talvez cerebral demais para uma Europa invadida por tribos bárbaras. Percebeu assim uma longa maturação até encontrar uma linguagem que lhe permitisse realmente se popularizar. Foi uma religião da elite até o século XIV, quando assumiu a forma que nos é familiar até hoje. Segundo Georges Duby, somente por essa época é que tornou-se realmente uma religião das massas ao incorporar uma pregação ostensiva na qual o sermão eloquente e o uso de teatro e imagens foram fundamentais para conquistar as populações incultas.
Como sempre acontece, é muito mais fácil se manter unidade quando uma religião é de minoria. Tão logo ela cresça e comece a se popularizar, e conquistar novos adeptos, as chances de que o sincretismo com outras práticas comece a resultar em algo diferente de suas origens é muito grande e até inevitável. Pois foi isso que aconteceu com a Igreja Católica. Foi quando a ocorrência de variações em interpretações das escrituras e práticas litúrgicas começaram a preocupar Roma. O medo era de que tais almas se perdessem, que saíssem do caminho da salvação e também medo de que novas igrejas paralelas fossem emancipadas a partir do tronco mestre da Santa Sé para constituírem-se em igrejas independentes e concorrentes.
Essas variações traziam elementos muito conflitantes com os fundamentos do catolicismo. Na França, os Vaudois, entendiam que os fiéis deveriam ter acesso direto às escrituras. Velho e Novo Testamento eram traduzidos para linguagem local e as missas não aconteciam em latim. Entendiam também que qualquer um de boa fé poderia celebrar os ritos cristãos tais como missas, casamentos e batismos – até mesmo mulheres. Estavam já com uma agenda que só viria muito mais tarde com a Reforma Protestante.
Outro grupo, os Catares, tinham uma concepção do mal, na figura do demônio, com um status de força universal competindo com Deus. O diabo aparece nas escrituras mas nelas são considerados apenas “anjos caídos”, preservaram alguns poderes “angelicais” mas permanecem sob total controle de Deus, não são seus “inimigos”. Têm o livre arbítrio, como os humanos, e por isso podem fazer o mal, mas não têm estatura para fazer frente a Deus. Já os Catares viam o mundo como uma batalha entre forças antagônicas do bem e do mal e acreditavam em uma autonomia bem maior para a figura do demônio.
Párocos locais tornavam-se facilmente apoiadores ou, no mínimo, eram tolerantes e fracos para reconduzir a comunidade à ortodoxia. Assim percebeu o alto clero que se o objetivo era manter a centralização, uma ação centralizada se fazia necessária. Assim foi que essas variantes da religião oficial foram consideradas heresias e o programa que se lançou com a clara missão de identificar e sufocar esses movimentos foi a criação da Inquisição, ou Santo Ofício.
O Papa deixou a nova organização nas mãos dos Dominicanos, a ordem com melhor preparo acadêmico nos fundamentos do catolicismo. Inquisidores foram enviados para as regiões onde se concentravam os heréticos. A princípio, não seriam superiores ao clero local, mas não tardou para que fossem tratados com tal em função de sua ligação direta com Roma. Foi assim que começou.
Funcionamento geral da Inquisição
A Inquisição, era um poder judiciário espiritual. O “crime” estava na intenção do réu e este era visto apenas como alguém desorientado da verdadeira e única fé. Não deram, publicamente, às heresias uma condição de novas religiões cristãs, alternativas ou “concorrentes” do catolicismo, embora no fundo fosse esse o temor. Antes, eram tratadas como descaminhos, casos de corrupção, e seu objetivo era recuperar os fiéis para seio da igreja. Muito condizente com o Cristianismo, baseava-se nas instâncias da confissão, arrependimento e perdão. Até aqui parece bastante louvável, mas na prática sabemos o quanto os processos eram cheios de vícios quando comparados à justiça comum inspirada no Direito Romano.
Usavam e abusavam de delações suspeitas. Qualquer acusação, vinda mesmo da pessoa mais descredenciada ou interessada na condenação, era levada muito a sério. Não havia necessidade de confirmação por uma segunda testemunha ou provas materiais para se proceder à prisão. Era o que se chamava testemunha singular. Um ato denunciado por alguém, ato que poderia ser tanto banal como herege, era sempre interpretado com herege. Nesse sentido funcionava muito como uma polícia do pensamento buscando quais seriam motivações secretas de tal ou tal característica ou comportamento. O tribunal se outorgava o direito de fazer ilações a partir de muito pouca evidência.
A tortura, a princípio, não fazia parte dos instrumentos autorizados para se obter as confissões. O clero era mesmo proibido de realizar ou presenciar os suplícios. Mas a partir do Papa Alexandre IV, em 1256, foi dado livre curso à utilização da tortura. Como aplicava-se apenas ao corpo e para os católicos o corpo não tem importância alguma, ainda mais para alguém em risco de perder sua alma para a danação eterna, a tortura não era vista como problema maior. Deus ajudaria o inocente a suportar seu martírio. A justiça civil, por outros motivos, também usava esse instrumento quando via necessidade. São Tomás de Aquino dizia que mesmo no caso de alguém que fosse torturado injustamente, não haveria o que se lamentar, pois Deus o compensaria 100 vezes mais. Tinham tal fixação por obter confissões que seviciavam seus réus até que eles confessassem o que não haviam feito. O torturador, para desempenhar bem o seu papel, é sempre alguém previamente convencido da culpa de sua vítima. Qualquer dúvida a esse respeito trará o risco de que ele recue antes de obter uma confissão, tornando-o inútil como torturador.
Outros expedientes tornavam o processo exasperante. Os réus não eram informados sobre quem os denunciara e qual seria o conteúdo das acusações. Precisava confessar e delatar outros hereges, mesmo sem saber do que estava sendo acusado. Era logo de início preso e não havia prazo para o processo terminar. Podia levar semanas, meses ou anos. Todo esse tempo o acusado ficava em condições péssimas, em cárceres imundos e com frequência não as suportava. Para as famílias, normalmente, ter seus membros em processo inquisitorial significava o opróbrio de seus conterrâneos e consequente ruína moral e material.
Aqueles que se assumiam como hereges (existiram muitos casos assim), ou que insistiam na sua inocência de bons cristãos, eram considerados sem possibilidade de recuperação e eram excomungados. Essa era a pena espiritual máxima, era o limite até onde o Santo Ofício podia chegar. Porém, desde o início, a Inquisição já nasceu de um acordo entre as esferas Espiritual e Secular, entre o Papa e o Rei, e a heresia, atestada pelo Santo Ofício, na legislação Secular era punida com a morte. Então, podemos dizer que a Inquisição nunca matou um só herege. Ela o “relaxava para o braço secular”, e era a justiça comum, civil, que preparava a fogueira.
O único meio de sair vivo era confessar e se arrepender. Nesses casos, outras penas podiam ser aplicadas. Os arrependidos deveriam fazer peregrinações, toda sorte de penitências, portar para sempre símbolos costurados em suas vestes, dentro e fora de casa, seus bens poderiam ser confiscados. Os relaxados ao braço secular também perdiam tudo. Quando o acusado morria no cárcere antes da conclusão do processo, ou se era julgado postumamente, ou se era julgado estando foragido, seus bens nas mãos de herdeiros eram também confiscados. O beneficiário do confisco era o Rei, não a igreja. Porém, o Santo Ofício administrava essa receita e podia descontar todas as suas despesas relativas à prisão, processo, pagamentos a guardas, carrascos, equipamentos, quadro eclesiástico, enfim, todos os custos da Inquisição poderiam ser bancados com o que se apurava com os confiscos dos bens dos réus em evidente conflito de interesses.
A eficácia na erradicação dos hereges Vaudois e Catares não pode ser negada. No início do século XIV já eram raros os casos de processos relativos a essas heresias que foram praticamente a razão de ser em uma primeira fase da Inquisição.
A partir deste tempo entra em cena a mais comentada e romanceada “caça às bruxas”. Mágicos, advinhos, curandeiros, bruxas e outras figuras que até então eram normalmente consideradas como que folclóricas, parte das superstições inofensivas do povo, passam a ser vistos como ameaças à religião católica. A perseguição, que fora a grupos com ideologia, dá lugar a perseguições individuais desconexas. O alvo agora eram párias solitários que se acreditavam com super poderes. O que estes indivíduos tinham em comum, na visão da Igreja e não raro deles próprios, era a sua comunicação com as forças do mal, com o demônio, e por isso precisavam ser eliminados. Embora não fossem organizados entre si, como foram as heresias Vaudois e Catar, havia certamente o demônio por trás de tudo. O Diabo era o nó e a ameaça que se manifestava de modo fragmentado por meio desse exército de bruxos aparentemente independentes.
Interessante que em certa medida a Igreja comprou aí um ponto de vista da heresia Catar. Imaginaram um mundo do Mal tramando para acabar com a cristandade e tendo o demônio como chefe supremo. Como foi dito logo acima o diabo, com essa característica de grande príncipe das trevas, foi uma invenção da Idade Média. Ela serviu para inflamar os sermões e dar um caráter de grande guerra do bem contra o mal. Didier Le Fur, historiador francês contemporâneo, em seu livro L’Inquisition (2012, no qual a maior parte dessas informações sobre a Inquisição na França foram pesquisadas), salienta essa transformação: “As coisas mudaram muito radicalmente a partir do século XIII, época em que os demônios parecem ter invadido o espaço cotidiano. O desenvolvimento da predicação, instrumento de educação e persuasão dos fiéis, mensagens que exacerbavam os pecados e as faltas para tornar necessárias a confissão e as orações aos defuntos, para que escapassem do inferno, participa largamente à invasão progressiva dos demônios dentro do imaginário cristão dessa época”.
No caminho inverso passou-se também a considerar que mesmo aquelas heresias que eram variações, reformulações, novas exegeses das escrituras, aquelas que partiam das mais puras bases do cristianismo e queriam ser na verdade seu aperfeiçoamento, faziam parte desse complô, eram igualmente demoníacas e como tal deveriam ser combatidas.
A dramaticidade com que a guerra entre o bem e o mal, entre Deus e o Demônio, entre a virtude e o pecado, eram apresentadas e a absoluta necessidade de se preparar para a vida após a morte e o juízo final, para se escapar do inferno, são apresentados por Georges Duby como os principais conceitos trazidos para promover a popularização do catolicismo a partir do século XIV.
Essas são as duas grandes fases da Inquisição na Europa. Uma primeira focada nas heresias que eram como que religiões dissidentes e uma segunda focada em bruxarias e afins. Ambas terminaram por criar uma ideia unificada de um demônio universal ameaçando o mundo cristão e tentando derrotar a Igreja ao aliciar os fiéis para sua causa maléfica.
A Inquisição em Portugal só foi instalada mais tarde, no século XVI, e teve todas essas características quanto ao seu funcionamento. Era um esforço conjunto, um compromisso entre o Rei e o Papa, realizava os confiscos, baseava-se em delações, torturas, confissões, arrependimentos e penitências espirituais e penas pecuniárias. Também relaxava os irrecuperáveis ao braço secular que os executava.
O ponto onde a Inquisição em Portugal diferenciou-se bastante das que a precederam foi em que o combate no qual se empenharam não foi contra uma dissidência da religião católica, como nos primeiros tempos da Inquisição na França e nem contra superstições que se manifestavam em bruxarias, esoterismos e cultos ao demônio. A Inquisição em Portugal visava muito claramente a burguesia de origem judaica, coisa que em Portugal era praticamente sinônimo de burguesia como um todo.
A Inquisição teve um efeito retardador enorme, quase suicida, no rompimento de Portugal com o sistema feudal, no desenvolvimento de Portugal em direção a uma nação moderna cuja fonte de riquezas seria a indústria e o comércio e cujos líderes seriam, naturalmente, democraticamente, os representantes dessa nova ordem, fossem eles empresários ou trabalhadores. A Inquisição representou uma insistência na ordem espiritual e aristocrática e esta foi em grande parte financiada com a exploração da burguesia em favor da manutenção de ideais de fidalguia e cristianismo.
Para entendermos como foi possível esse mecanismo precisamos trazer a questão dos Cristãos-novos. Pois chamavam-se, hoje nos parece até irônico, Cristãos-novos, os descendentes de judeus que a Coroa portuguesa, junto com a Inquisição, ocupou-se de perseguir por mais de duzentos anos.
Cristãos-novos
Judeus foram vítimas de perseguições, expulsões e massacres por toda a Idade Média em vários cantos da Europa. Viviam e conviviam em comunidades isoladas, normalmente dedicavam-se a alguma manufatura, comércio e finanças e interagiam com os locais através da venda de seus produtos e serviços. Vez por outra, em função de alguma querela, tragédia de origem desconhecida ou má colheita, eles eram tomados como bode expiatório, alvo de ódios e preconceitos. Então explodiam os conflitos nos quais eles tinham três desvantagens básicas em matéria de conflitos: eram facilmente identificáveis, não eram armados e eram minoria.
Havia um ruído de base entre cristãos e judeus cuja origem era a disputa a respeito da validade ou não de Jesus como messias. O não reconhecimento do Novo Testamento pelos judeus era algo a que os cristãos não conseguiam ficar indiferentes. Ao mesmo tempo, havia uma base comum pois compartilhavam com eles a fé no Antigo Testamento. Havia portanto essa proximidade física do convívio e ideológica da religião, mas havia também esse importante desentendimento. A maneira mais branda com que cristãos reagiam a essa situação era a de figurar os judeus sempre em posição de inferioridade, como perdedores ou até traidores, lembrando que foram eles que crucificaram o seu salvador.
A iluminura reproduzida acima é um bom exemplo do lugar que os cristãos davam aos judeus. É uma página saltério de Blanche de Castille, esposa de Luis VIII da França, datado de 1230. No círculo superior temos o Cristo crucificado com a Virgem Maria e São João. Abaixo, os dois novamente, em outro tema recorrente na iconografia, que é a ‘descida da cruz’. Nos semi-medalhões laterais estão Eclésia à esquerda e Sinagogue à direita. A primeira é a personificação da igreja católica e a segunda do judaísmo. Eclésia, em sua cabeça erguida porta uma coroa, na mão esquerda o cálice da comunhão e na direita o bastão de Jacó (Jakob’ staff), símbolo de autoridade. Já Sinagogue, cabisbaixa, tem sua coroa que parece escorregar de sua cabeça, uma lança quebrada e as tábuas com as leis mosaicas caindo ao chão. Os judeus eram tolerados, desde que não objetassem a ser como Eclésia e Sinagogue nessa iluminura.
A presença de judeus em Portugal é muito antiga e difícil de rastrear em suas origens. Segundo Maria José Ferro Tavares, da Universidade Aberta de Lisboa, em seu texto para o catálogo da exposição Lusa, a matriz portuguesa, documentos provam sua presença desde pelo menos os tempos do Império Romano e início da era cristã. Na Idade Média, ainda que vivendo em comunidades separadas, já faziam definitivamente parte da paisagem. Tavares descreve como eram e ao mesmo tempo não eram inseridos na sociedade de então: “Os judeus pertenciam ao rei – significa isso que era o monarca que permitia que eles vivessem , ou não, no território. Viver no local significava ter permissão para residir, possuir casa e constituir família com um seu correligionário, trabalhar e negociar, exercer um ofício, seguir sua religião, ser julgado segundo a sua lei, o Talmude, ser sepultado segundo o seu ritual. Essa permissão era dada às comunidades através de uma carta de privilégios que outorgava a uma comunidade seus foros, liberdades, e direitos e a cada indivíduo adulto pela carta de contrato. Podemos associar os reis de Portugal ao título com que Afolso VI de Leão [1047-1109] se atribuía, rei das três religiões”.
Tavares cita ainda a figura do Rabi-mor, um judeu de confiança do rei, que vivia na corte e além de intermediar a relação da coroa com as várias comunidades judias, tinha um papel de contabilista e tesoureiro do reino. Era ele que inventariava as riquezas, que calculava tributos extraordinários necessários para financiar uma guerra, o dote de uma filha ou filho e era ele que movimentava a comunidade judaica para operacionalizar empréstimos ao rei. É interessante se imaginar como a tradição na manipulação de números, nascida na Babilônia e dominada por árabes, persas, judeus e hindus, ainda salvaguardou a seus descendentes, em épocas tão posteriores, o exercício desses saberes em terras ocidentais. A matemática grega, sem dúvida muito importante e avançada, era geométrica, visual por assim dizer, mas se sabemos fazer contas hoje, é ao Oriente Médio que o devemos.
Apesar desse isolamento em bairros judeus, o tempo lentamente promoveu uma aproximação. “A conversação entre cristãos e judeus era frequente, pelo que Dom Afonso V [1432-1481] determinaria que, nos locais onde era mais evidente, as janelas baixas se fechassem, deixando apenas uma fresta gradeada por onde entrasse o ar e a luz, mas evitasse a proximidade, entendida como perniciosa, entre os indivíduos das duas religiões” (Tavares). Outra evidência desse processo de integração, e da reação contrária de autoridades à sua consumação, é que “a partir de meados do século XIV, se passou, nos maiores concelhos [bairros], a fechar por portas que encerravam ao pôr-do-sol e abriam ao nascer do sol, e por um vestuário específico que no caso português, foi primeiramente uma roda e depois uma estrela de seis pontas”(Tavares). Não fosse o risco de confusão, não haveria a preocupação de marcar a distinção.
Mais ou menos discriminados e mais ou menos integrados o fato é que enquanto Portugal e Espanha estavam sob domínio árabe os judeus lá viveram fazendo seu comércio e eram apenas mais uma comunidade em terras que sempre foram ponto de confluência de gentes de vários cantos do mundo em vários tempos e culturas. Portugal é conhecida também como Finis Terra, como ponto final de correntes migratórias, conquistadores, errantes e todos que perambularam à oeste no continente Europeu até o Mar Tenebroso. Nesse quadro, até a expulsão dos árabes pelos cristãos, os judeus ficavam de fora do antagonismo que existia entre locais e invasores e viviam nessa neutralidade.
Com a progressão da expulsão árabe a fila andou e eles se tornaram “os estrangeiros”. Isso lhes custou um acirramento das leis que já existiam e que cerceavam-lhes uma série de direitos e benefícios que ficavam assim reservados apenas aos cristãos. Havia uma burguesia cristã pequena, mas que se consolidava e enriquecia, que via os judeus como obstáculo à sua expansão. Iniciou-se um programa de limpeza de sangue, na Espanha no ano de 1449, proibindo por via de lei que pessoas de ascendência judaica tivessem acesso a inúmeros cargos, honras e profissões. Muitos se converteram ao cristianismo, muitos emigraram para outras partes da Europa. Estima-se que 20 mil famílias cruzaram a fronteira para Portugal. Em 1478 instituiu-se a Inquisição em Castela. Ela iria intensificar a perseguição aos “marranos”, judeus convertidos que ainda, secretamente, praticavam o judaísmo. Uma expulsão definitiva de todos os judeus que não quiseram se converter viria em 1492, quando ficariam em território espanhol apenas cristãos tradicionais ou judeus convertidos ao cristianismo.
Em função das novas terras e rotas marítimas que Portugal visava explorar, a entrada de judeus não se figurou como má ideia para a coroa. O país era agrário e o Rei D. Manuel precisava urgentemente de profissionais, principalmente malheiros, ferreiros, lanceiros e todos ligados à indústria bélica. Começou então uma política dúbia que visava aproveitar esses saberes e braços e ao mesmo tempo ostentar uma atitude hostil para agradar seus vassalos, os reis Católicos de Espanha e também a Igreja. Os judeus eram úteis e mal vistos ao mesmo tempo.
Dessa forma Dom Manuel permitiu a entrada dos que fugiram da Espanha, após a expulsão de março de 1492, mediante um pagamento de 8 cruzados por cabeça, 4 cruzados para os que atuassem em indústrias de seu interesse. Embora conveniente, essa entrada de judeus no reino de Portugal irritava principalmente quem os expulsara, os ditos Reis Católicos, Rainha Dona Isabel de Castela e o Rei Dom Fernando II de Aragão. Bom lembrar que embora por comodidade possamos nos referir ao território como “Espanha”, na verdade, à época, eram ainda dois reinos, Aragão e Castela, unidos pelo matrimônio de Dona Isabel e Dom Fernando.
Porém, acontece que Dom Manuel em Portugal tinha suas ambições e pretendia o trono dos três reinos para si. Então arranjara casamento com Isabel, filha dos Reis Católicos, a qual viria a se chamar Isabel de Portugal. Como parte das manobras para mostrar alinhamento com os vizinhos ele expulsa os judeus em um edito de 4 de dezembro de 1496. A rainha católica, Isabel de Castela, acreditava que todos os males de Portugal eram castigo de Deus por conta de seu rei permitir a presença desse povo ímpio em seu território.
Dubiamente, no entanto, Dom Manuel dá aos expulsos o longo prazo que expiraria apenas quase um ano depois, em setembro de 1497, para que deixem definitivamente o país. Pois essa era a data em que sua consorte deveria chegar. Dona Isabel, não queria em absoluto ser a rainha de um país infestado de judeus. Mas Dom Manuel tinha outros planos e formas para “limpar” suas possessões.
“Até setembro de 1497, quando Dona Isabel entrou no reino, os judeus foram sendo convidados a converterem-se ‘livremente’, através da concessão de privilégios, ou à força. A 19 de março, sábado de Ramos e talvez Páscoa judaica, o rei mandou retirar as crianças a seus pais e, no sábado seguinte, véspera da Páscoa cristã, fez conduzir à pia baptismal adolescentes, jovens e adultos que se encontravam nos estaus [hospedagens] de Lisboa preparando-se para embarcar. Até setembro, cerca de 100 mil judeus portugueses e espanhóis eram baptizados em pé em todo o reino. Poucos foram os que conseguiram partir livremente sem receber as águas do baptismo” (Tavares).
É importante notar que isso não seria apenas um ato burocrático, simbólico e dependente do acordo do convertido. Tampouco seria reversível. Para um cristão verdadeiro, a água benta não é um símbolo, ela é de fato um fluído sagrado e poderoso, capaz de transformar alguém em cristão e incluir essa pessoa no rol as ovelhas do rebanho de Cristo com direito a juízo final e vida eterna no paraíso para os que bem o mereçam.
Foi assim que surgiram os Cristãos-novos. Em curto espaço de tempo, através de editais reais e ações do clero, não havia mais judeus em Portugal. Converteram-se todos. Uma solução como que milagrosa para conciliar a necessidade que tinha o reino desses profissionais, de seu dinheiro e o preconceito que o judaísmo e seu modo de vida inspirava.
É claro que não se muda assim, de uma hora a outra, a cultura de um indivíduo. O modo de vida em suas infinitas atitudes relativas à alimentação, vestuário, fala, histórias, valores, relações familiares… isso tudo fica impregnado e embora sejam convenções, ninguém as vive como meras convenções a ponto de conseguir mudá-las conforme as conveniências ou mesmo necessidade. Por melhores e mais urgentes que sejam essas pressões, a pessoa continua reagindo como que por instinto, dentro de sua formação e de tudo que vivenciou até então.
Esta observação tem o objetivo de ponderar que entre as famílias que guardaram práticas da religião judaica, e que por isso foram perseguidas, podemos ter casos de real resistência, uma espécie de impostura, mas também a simples continuidade de hábitos automáticos que não significavam necessariamente rebeldia. Muitos mudaram de nome, de cidade, e tentaram apagar totalmente sua origem e começar vida nova. Todos frequentavam missas e participavam da vida comunitária cristã na medida em que sua condição e os preconceitos lhes permitissem, pois não eram bem aceitos pelos Cristãos-velhos.
A maneira como receberam intimamente a conversão forçada é impossível de saber. Poderia ser mais pelo lado da revolta à violência de ter que abandonar sua tradição, sua religião, ou como oportunidade para uma vida enfim livre da canga que é o preconceito. Temos que considerar que eram famílias vivendo na península há muitas gerações. As duas vias eram igualmente possíveis. O professor Antônio José Saraiva, portugues, publicou em 1969 o livro “Inquisição e Cristãos-novos” onde chama a atenção para o envolvimento que essa participação na vida comunitária cristã exigia. Não se era cristão apenas dizendo-se cristão e ficando em casa. Os compromissos com missas, novenas, procissões, rezas, festas e obras eram muitos e exigiam participação. Respirava-se religião em todos os aspectos da vida cotidiana. Da mesma forma, não se pode ser judeu muito secretamente, a quantidade de atividades comunitárias é igualmente pesada. Acredita então esse autor que ao cabo de muito pouco tempo a nova religião deve ter de fato promovido um efeito de substituição e talvez a antiga tenha ficado mais como uma memória afetiva na vida daqueles Cristãos-novos.
Existem relatos de que nas primeiras décadas após a conversão forçada houve um período de integração, corroborado por leis proibindo discriminação e liberando o acesso dos Cristãos-novos a posições de prestígio. Houve uma política assumidamente integradora por parte do rei Dom Manuel. António Ribeiro Sanches (1699-1783), português, médico, filósofo e enciclopedista, formado em Coimbra e Salamanca, passou boa parte da vida na Russia como médico da corte e depois em Paris, onde escreveu um texto em 1748 intitulado “Cristãos Novos e Cristãos Velhos em Portugal”. Ele assinala esta integração dos Cristãos-novos dentro da sociedade portuguesa: “Não lemos que no tempo d’El Rei D. Manuel [reinado de 1495 a 1521] fosse o nome de Cristão-novo obstáculo algum para entrar no Estado Eclesiástico, nem aos Cargos honrosos do Estado; porque então não era necessário, nem era costume tirar as inquirições [espécie de atestado de antecedentes emitido pelo Santo Ofício]; Sabemos certamente que muitos desta Nação [‘gente da nação’ é uma outra denominação para judeus] até o tempo de El Rei D. Sebastião [1554-1578], entravam tanto nos cargos honrosos do Estado, como nos Eclesiásticos”.
Nobres e alto clero tendiam a ser mais abertos e condescendentes, pois sua aproximação com os Cristãos-novos dava-se espontaneamente pela natureza dos campos onde estes atuavam. Estavam fortemente no mercado financeiro e eram oficiais de alfândega, contabilistas e cobradores de impostos, cargo este altamente impopular como se pode imaginar, mas fundamental para o reino. Monopolizavam ainda a medicina e foram uma espécie de herdeiros dos árabes em tudo que diz respeito às ciências incluindo astronomia e navegação. Os ricos beneficiavam-se ainda dos Cristãos-novos que ocupavam posições como tecelões, ourives, marceneiros, barbeiros, alfaiates, sapateiros, caldeireiros, carroceiros, seleiros, cordoeiros, oleiros e cesteiros entre outros ofícios mecânicos essenciais para quem levava uma vida com um pouco ou muita sofisticação.
Já para a “gente miúda”, lavradores, artífices, profissionais mecânicos em geral e para o baixo clero, eles eram ainda, antes de mais nada, o povo que crucificou Jesus Cristo. Embora Cristãos-novos vivessem, e talvez até por que viviam com certo conforto, e alguns eram até mesmo muito ricos, nunca se lhes permitiu participar da vida social sem a pecha, sem o “lembrete” de que apesar de tudo ainda seriam impuros e inferiores ao Cristão-velho, como Sinagogue e Eclésia. Isso teria um peso muito grande para o endosso popular aos atos da Inquisição. As perseguições e as execuções públicas infligidas aos Cristãos-novos davam aos miseráveis o alento de que ainda tinham alguém abaixo deles na escala social. Sanches salienta esse aspecto: “quanto mais vil é o nascimento e o ofício do Cristão-velho, tanto mais fortemente insulta o Cristão-novo; porque como é honra de ser Cristão velho, quem insulta e despreza a um da Nação, honra-se e distingue-se; por isso. O Carniceiro, o Marióla, o Tambor, e o mesmo Algoz, o Negro escravo são os primeiros que insultam, e que dão a conhecer com infâmia um Cristão-novo”
Também não devemos nos enganar com a proximidade dos fidalgos. Ainda é o professor Antonio José Saraiva, que pondera qual era o teor da tolerância da aristocracia para com os Cristãos-novos: “Favorecidos ou não pelos magnatas que recorriam aos seus serviços e utilidades, os Judeus constituíam uma classe de párias à margem da sociedade comum […] exerciam uma função social que se considerava inevitável mas degradante no mundo feudal. O favor que pudessem receber dos poderosos não era, portanto, sinal de valia social, mas a expressão do apreço caprichoso e interessado que se pode ter por um animal doméstico, um escravo, uma mulher comprada, um bobo da corte, um jogral, apreço cuja manifestação pode ser justamente uma exibição de poder. O Rei protegia contra o cristão o ‘seu’ judeu”.
Difícil imaginar hoje, em um mundo no qual tendo dinheiro e um mínimo de conduta civilizada, qualquer um consegue ser aceito e querido – se for muito dinheiro, até a questão da conduta pode ser relativizada. Difícil compreender a persistência na perseguição aos descendentes de judeus quando eles até já haviam incorporado nomes, maneiras e ainda a religião cristã em suas vidas. Mas os Cristãos-novos não conseguiam esta paz de espírito que é habitar um lugar, frequentar uma gente, que se possa chamar de meu lugar e minha gente. Citando Sanches novamente, em seu texto de 1748, temos uma ideia de como, desde cedo, o Cristão-novo já sentia o peso de sua condição: “Tanto que um Menino Cristão-novo é capaz de brincar com os seus iguais, logo começa a sentir a desgraça de seu nascimento, porque nas disputas que nascem dos brincos daquela idade, já começa a ser insultado com o nome de Judeu e de Cristão novo. Entra na Escola, e como é costume Louvável que estes Meninos vão, não só os dias de preceito, mas ainda de trabalho, à Igreja já com o seu Mestre a ouvir missa, e ajudar a ela, acompanhar o Santíssimo Sacramento, e outras procissões, o mesmo Mestre, o Clérigo ignorante, o Irmão da Confraria, e o pior, mesmo o Pároco, já fazem distinção deste Menino e daqueles que são Cristãos velhos; porque estes são preferidos para ajudar à Missa, para levar o Castiçal, ou a vela branca, ou tomar a vara do Pálio. Esta preferência é bem notada daquele Menino ou Rapaz Cristão-novo; agasta-se, peleja e chora por se ver tratado com desprezo”.
Enquanto foram plenamente judeus, segregados, frequentando suas sinagogas, escolas e até justiça próprias, a prática de sua religião e hábitos, per se, não era propriamente um ilícito. Viviam em seus guetos, judiarias ou alfamas em Portugal, e reduzidos eram os contatos com os cristãos. Esses contatos limitavam-se ao campo estritamente profissional. Estavam fora do escopo da Igreja Romana e praticamente fora da vida dos portugueses. Porém, uma vez batizados e tornados católicos, uma vez fechadas todas as instituições judias, esses contatos se multiplicaram e os ódios se acirraram. A persistência, ou a possível persistência, suposta persistência, em práticas de sua antiga religião era vista como uma afronta, como uma heresia, e como tal deveria ser perseguida e exemplarmente punida. Foi nesse aspecto que a Inquisição, solicitada pelo Rei ao Papa, se transformou na perseguição aos Cristãos-novos, perseguição a famílias judias convertidas ao cristianismo, mas que violavam as leis da Igreja ao insistirem na manutenção de ritos e costumes judeus. Essas famílias constituíam, na visão das autoridades temporais e espirituais, uma ameaça de corrupção a toda cristandade, bem ao modo de uma heresia.
Essa era a fachada ou a narrativa oficial. Mas é muito difícil não se considerar também outras motivações, de natureza fora da religião, para os milhares de Cristãos-novos que morreram, faliram, fugiram e cairam em todo tipo de desgraças por ação direta ou indireta das delações de Cristãos-velhos e consequentes processos inquisitoriais com penas, confiscos e execuções pelo braço secular.
A perseguição que se seguiu por mais de duzentos anos não foi contra um grupo estrangeiro judeu, organizado, em oposição à Igreja Católica, como foram os Catares ou Vaudois. Não eram, em sua maioria, os Cristãos-novos, rebeldes à religião que foram convidados ou forçados a adotar. A perseguição foi em larga medida a perseguição a um grupo que vivia há muito tempo em terras portuguesas, que falava a língua, que mais e mais se misturava com os Cristãos-velhos e aos poucos integrava-se, na medida em que o preconceito o permitia, à vida e prática cristãs, ainda que tivessem ascendência judaica. Se não fosse por outro motivo, se deixarmos de lado qualquer questão religiosa, mesmo assim estamos falando de um grupo que queria poder, queria ocupar postos, queria participar da corte, da vida intelectual, da hierarquia católica e das decisões do reino. Eram adultos que quando meninos queriam ter “levado o castiçal”, mas este lhes fora negado.
A questão dos cristãos novos foi um caso clássico de falsa argumentação. O problema não era a insistência pela manutenção da religião judaica. Em inúmeros casos essa insistência simplesmente não existia. Incontáveis Cristãos-novos que fugiram ou foram expulsos de Portugal para Holanda ou França, onde poderiam voltar à sua religião ancestral, permaneceram cristãos. Muitos foram cristãos exemplares, abraçaram a carreira eclesiástica e galgaram altos postos como tais em outros países.
O que cristãos-velhos combatiam era um modo de vida que ameaçava o equilíbrio de uma sociedade ainda feudal, baseada na tradição, nos valores aristocráticos, na cavalaria, em uma visão estática da vida aqui na Terra, segundo a qual, cada um deveria viver com o que Deus lhe deu. O burguês, como vimos logo acima nos estudos de Groethuysen, não tinha lugar nesse mundo, fosse ele judeu ou não. A sua soberba, sua ousadia de querer enriquecer, trabalhar e planejar seu futuro, era o verdadeiro motor que potencializava o ódio à burguesia como um todo. Acontecia que por serem os judeus burgueses, encontrava nesse grupo uma justificativa transcendental, religiosa, para se exercer uma reprovação que ia muito além.
As evidências dessa guerra provavelmente muito mais relativa a uma nova ordem econômica e de poder, do que religiosa e espiritual, nós encontramos quando estudamos as relações entre a coroa, o Santo Ofício e os Cristãos-novos ao longo da tenebrosa história da Inquisição em Portugal.
Depois de um breve período de efetiva porém incompleta assimilação dos judeus convertidos, durante o período Manuelino, a Inquisição operou uma “dissimilação que conduziu a uma nova discriminação e criou, em lugar da antiga minoria extinta, uma nova minoria em estatuto social de inferioridade” (António José Saraiva).
A inquisição em Portugal
A conversão forçada de Dom Manuel desagradou em muito os pequenos clérigos que faziam o trabalho sacerdotal básico de rezar missas, tomar confissões, procissões e rezas, pois aqueles que de tempos imemoriais eram o contra-exemplo do bom cristão, senão o “inimigo”, por um ato do rei, viraram da noite para o dia, membros da irmandade católica. Sentiram-se contrariados e traídos.
Um degrau acima, “a conversão introduziu no seio da Cristandade um grupo numeroso de letrados não clericais […] constituíam um conjunto que ameaçava o monopólio clerical da opinião” (Saraiva). É bom lembrar aqui o quanto a Igreja dominava os meios eruditos e acadêmicos. Previsível então que não receberiam com muito entusiasmo os novos membros que, como vimos mais acima, eram versados em ciências e letras desde os tempos do domínio árabe na península Ibérica. Esse foi como que o início oficial em Portugal da rivalidade entre um setor intelectual burguês não necessariamente alinhado com o religioso.
Na sociedade laica, a conversão forçada e as políticas integradoras dos primeiros quarenta anos promoveram oportunidade de casamentos entre nobres e noivas hebraicas portadoras de dotes interessantes. O acesso mais aberto a cargos e as oportunidades de negócio enriqueceram tremendamente os Cristãos-novos. Muito setores e atividades eram monopólio de fidalgos e da própria coroa. O comércio do açúcar (em certos casos), o de escravos e outras formas de concessões para exploração comercial eram então arrendados a empresas quase que invariavelmente de, ou envolvendo, Cristãos-novos. Os fidalgos não queriam gerenciar eles próprios tais negócios aos quais tinham o direito exclusivo, lembremos que o comércio e a manufatura lhes pareciam indignos, e então arrendavam esse direito a quem pudesse, por capital e disposição, melhor lhes fazer retornar o privilégio em forma de renda.
Muito importante ainda nesse ponto, é que as perseguições e verdadeira diáspora judaica a partir da península Ibérica desde o século XV, fizeram com que os judeus portugueses se espalhassem por vários cantos do mundo e isto facilitou em muito a criação de verdadeiras empresas globais, com correspondentes, filiais e ramificações nos principais centros e portos da Europa e Oriente. Não raro, os empreendimentos que exigiam capitais vultuosos eram viabilizados por esses contatos e associação de Cristãos-novos portugueses com empreendedores da Holanda, França e Itália. Já a classe mercantil portuguesa de Cristãos-velhos, pequena e provinciana, não conseguia competir e reclamava muito de ver o rei preterindo-os em favor de um grupo estrangeiro capitaneado por Cristãos-novos de Portugal. “Por todos os reinos e províncias da Europa está espalhado grande número de mercadores portugueses, homens de grandíssimos cabedais, que trazem em suas mãos a maior parte do comércio e riquezas do Mundo” (1643 – Padre Antonio Vieira).
Os ganhos com os arrendamentos e licenciamentos era distribuído “entre os funcionários civis e militares nomeados pelo Rei. Quer sob a forma de ordenados e prêmios, quer sob a forma de direitos, quer ainda sob o de oportunidades de rapina guerreira. Os beneficiários principais eram recrutados na nobreza tradicional, que desta forma enriqueceu, não por meio de uma atividade comercial, mas no exercício de cargos militares e administrativos ou no gozo de sinecuras […] assim se explica que a nobreza portuguesa, embora beneficiando-se dos proventos do comércio da Coroa, não tenha forjado uma mentalidade burguesa” (Saraiva).
Além desses arrendamentos de direitos dos nobres e fidalgos, a atuação dos Cristãos-novos em atividades puramente financeiras e administrativas, como câmbio, crédito, operação de alfândegas e todo tipo de atividades financeiras, lhes garantiu um enriquecimento vertiginoso na época da maior efervescência da grande aventura mercantilista europeia.
A Igreja representava também uma atuação econômica importante, pois era dona da maior parte das terras e rendimentos em Portugal. Mas o número de eclesiásticos vinha crescendo a um ritmo acelerado e isso também colocava pressão sobre como financiar a estrutura. Os poderes espiritual e temporal estavam na prática muito intrincados a começar pelo fato da cúpula clerical ser ocupada pela própria família real e todo o alto escalão pelas famílias dos fidalgos. Assim como em outros países da Europa, nos quais Henrique VIII da Inglaterra é o caso clássico e que terminou com o rompimento e fundação da Igreja Anglicana, o rei D. João III (1502-1557) também disputava com o Papa os custos e proventos da Igreja em seu reino.
É nesse quadro que surge a Inquisição em Portugal. Ela é solicitada pelo rei Dom João III, ao Papa Clemente VII, para funcionar nos mesmos moldes daquela de Castela. Foi aprovada em 1536 depois um longo processo para que fosse obtida a autorização.
Usando uma terminologia contemporânea, podemos dizer que, economicamente, a Inquisição foi o instrumento para compensar o crescente déficit do setor público, clero e aristocracia, sangrando o setor privado, isto é, avançando sobre os capitais dos ‘homens de negócio’, leia-se dos Cristãos-novos.
Isso fica extremamente evidente, não apenas pelos confiscos dos bens dos réus do Santo Ofício, mas mais ainda quando observamos que inúmeras vezes foi negociado com os Cristãos-novos, em bloco, períodos de “anistia”, de proibição de novos processos e abrandamento da perseguição, em troca de pagamentos de somas vultuosas coletadas dentro da comunidade. Esse tipo de expediente claramente evidencia o quanto o lado espiritual ou religioso da questão ficava para um segundo plano quando colocado em relação ao financiamento de um Estado inchado de funcionários e beneficiários improdutivos como era a nobreza, fidalguia e clero em Portugal.
Saraiva, sugere até que a Inquisição não foi mais do que um prolongamento das pilhagens de guerra travestido em forma de proteção contra heresias: “Sob o ponto de vista econômico a Inquisição não era uma empresa comercial, mas um processo de distribuir dinheiro e outros bens pelo seu pessoal numeroso – uma forma de pilhagem como a guerra, simplesmente mais burocratizada. O exército inquisitorial, cujos membros participavam na mentalidade senhorial e guerreira dos fidalgos da Índia, viviam de saquear os bens dos burgueses ricos”.
Outros historiadores já atribuem um papel secundário aos confiscos e reforçam a ideia de que o tema era mesmo espiritual ou no mínimo político e cultural. J. Lucio de Azevedo, historiador português, publicou em 1921 História dos Christãos novos Portugueses dentro dessa perspectiva. São mais de 500 páginas muito ricas em documentação e detalhes minuciosos sobre os fatos, processos e personagens. Seu argumento vai na direção de que a Inquisição era tão deficitária e os problemas financeiros do reino eram tão prementes que os confiscos jamais tiveram ou poderiam ter um peso muito grande ou maior do que o medo da influência hebraica e destruição dos valores cristão em Portugal. Ele pondera, por exemplo, que logo após a criação da Inquisição em Portugal, foram liberados os Cristãos-novos por 10 anos dos confiscos. Esses 10 anos iniciais foram prorrogados por mais 10 e D. João III, que articulou com o Papa para ter a Inquisição em seu reino, nem viveu para apropriar-se dos bens dos hereges. “… se alguma vez contou D. João III com tal recurso,para preencher o seu erário exhausto, não lhe aproveitou elle em vida, nem por muito tempo a seus successores trouxe vantagemapparente, a não ser a que adveio de, em certas occasiões, abandonarem a prerrogativa em retribuição de empréstimos ou donativos, que em commum lhes fazia a gente hebraica” (Azevedo).
O autor parece não dar muita importância a esses “empréstimos e donativos”. Mas eles constituíam benefício mais líquido e certo que os confiscos sobre os quais ainda era preciso deduzir os custos da Inquisição e sobre os quais o rei tinha pouca influência. Para citarmos um caso específico, quando venceu o prazo inicial de dez anos para que não fossem aplicados confiscos aos Cristãos-novos condenados por heresia, a imediata renovação por mais dez anos, foi negociada pela viúva de Dom João III. O próprio Azevedo comenta: “por outra fez a Regente aos perseguidos uma valiosa mercê, em 1558, remittindo-lhes por dez annos a pena da confiscação, para o que postulou o assentimento da Santa Sé. Não foi a graça generosidade da coroa, senão effeito de contracto e meio de obter subsídios, de que se ignora a quantia e a forma, fornecidos pela comunidade dos hebreus:”
Em outras ocasiões a negociação era feita às claras: “Quando se tratou da empresa de África, D. Sebastião [1554-1578] renegou a intransigência anterior e fechou com os christãos novos uma convenção pela qual, mediante a derrama de 250 mil cruzados, dispensava por dez annos os confiscos nos crimes de heresia. Supposta a applicação da somma, na guerra aos infiéis, foi autorisada pelo Papa a transacção.” (Azevedo).
Ao longo de toda a atuação inquisitorial os Cristãos-novos movimentaram-se bastante para comprar seu sossego e não raro tiveram sucesso. Intercediam com o rei e também em Roma. Pode-se notar por aí que não formavam um grupo tão homogêneo. Saraiva observa que encontramos com frequência benefícios de perdões, cargos, direitos e honrarias concedidas a Cristãos-novos em completa contradição com o uso e até com as leis de limpeza de sangue. Isso é indício de que havia também muita corrupção e que quem soubesse se movimentar nos meandros da corte e do próprio Santo Ofício seria capaz de contornar as imposições oficiais.
O caso Vila-Real
Ao mesmo tempo, aqueles que não soubessem jogar o jogo, podiam acabar na fogueira independentemente de seu poder e influência. O caso clássico foi o processo de Manuel Fernandes Vila-Real (1608-1652). De uma família de ricos comerciantes Cristãos-novos, Vila-Real havia conquistado uma posição de destaque e influência sobre as maiores autoridades temporais e eclesiásticas de seu tempo. Foi utilíssimo à coroa portuguesa no período em que esteve na França, a partir de 1638. Trabalhou para o embaixador de portugal, Marques de Nisa (título nobiliárquico na época pertencente a de D. Vasco Luís da Gama – 1612-1676), interferindo em diversos assuntos diplomáticos. Tinha um bom relacionamento com o primeiro ministro da França, Cardeal Richelieu, para ficarmos com apenas um exemplo do escopo de seu alcance entre personalidades de seu tempo. Em 1649 resolveu voltar para Lisboa. Esperava até uma recompensa do rei, mas ao mesmo tempo tinha algum receio de retornar a Portugal. Incentivado pelo próprio Marques de Nisa, que lhe escreveu uma carta de recomendações detalhada nos seus feitos e sem poupar elogios à sua retidão e valor como pessoa, arriscou voltar. Mas Vila-Real, segundo Ramos Coelho, em um texto de 1804, “conhecia ou lera muitos livros de história e de controvérsias religiosas da época; e, escrevendo muito e em muitas matérias, algumas já de si desagradáveis ao Santo Ofício, tornava-se fácil, ainda que o não quisesse, reproduzir aqui ou ali ideias um pouco livres, bebidas na sua leitura ou na atmosfera viciosa que respirava; certos desses escritos podiam mesmo prejudicar o terrível tribunal, e um designadamente, El politico christianissimo, havia incorrido nas iras da Inquisição de Lisboa.”
Realmente, sua publicação El político Christianissimo, que era um panegírico para o recém falecido Cardeal Richelieu, continha críticas abertas aos confiscos do Santo Ofício e à obscuridade de seus processos. Vila-Real, contava que pela importância de sua contribuição ao reino, em assuntos de diplomacia e comércio, teria algum tipo de isenção, mas enganou-se completamente. Ninguém, entre os seus poderosos amigos, foi capaz de livrá-lo da morte. Logo que chegou em Portugal foi preso por ser autor no livro censurado. Em seguida verificou-se que entre os 500 livros que trouxera consigo, havia 16 títulos que estavam no Index librorum prohibitorum, a lista de obras proibidas. Vila-Real argumentou que fora a pressa da partida a razão do engano. De nada adiantou, somou-se aí uma segunda falta grave por introduzir no reino livros perniciosos e contrários à fé cristã.
A terceira acusação veio na forma de delação de um velho conhecido com o qual Vila-Real tivera diversos atritos em seu período na França. Frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo, procurou o Santo Ofício para incriminá-lo como judaizante. Dizia que este “inclinava-se à lei de Moisés; dava-se e carteava-se, sem ser por comércio, com judeus de Paris, Ruão e outras partes do norte da França, e deles recebia livros da sua seita, que lhe viu, sendo um deles em português de doutrina e cerimônias judaicas” (Coelho).
Não satisfeito com o resultado de sua primeira incursão, inúmeras vezes esse Frei Francisco voltou ao tribunal com novas acusações. Uma delas foi de que havia informações que Sua Majestade preparava-se para enviar Vila-Real para o estrangeiro com alto salário e que este organizava uma coleta de dinheiro para negociar em Roma uma nova suspensão dos confiscos do Santo Ofício sobre os Cristãos novos.
Juntaram-se outras testemunhas que consideravam o acusado judeu, ateu, agitador contra a cristandade e diversas outras acusações desse tipo. Vila-Real foi preso e a partir daí declarações dos carcereiros sobre seus hábitos suspeitos, sobre noites em que não rezara, sobre dias que jejuara, tudo isso foi se adicionando ao copioso processo que seguiu a rotina normal do Santo Ofício quando o preso já estava de antemão condenado. Aparentemente Vila-Real custou a acreditar no desfecho que viria. Escreveu memórias enquanto preso ressaltando o quanto que foi útil e fiel à sua pátria. Não podia exatamente defender-se pois nem mesmo ao conteúdo e autores das acusações ele tinha acesso, como era de praxe na Inquisição.
Em uma tentativa desesperada, porém tardia, cedeu e resolveu mudar de tática: “pediu misericórdia; declarou apartar-se dos erros em que até ali vivera; e também: que durante a prisão fez quatrocentos e trinta e quatro jejuns, incluindo cinquenta e quatro de três dias, trinta e cinco de dois, e muitas cerimónias, além das que já dissera” (Coelho). Essa era a prática de todos os acusados mais prudentes. Jamais discutiam com o Santo Ofício e nunca tentavam provar que eram inocentes e bons cristãos. Confessavam logo de início e mostravam arrependimento. Muitos Cristãos-novos já tinham combinado com parentes e amigos novas acusações a oferecer ao tribunal e os que eram por elas encarcerados já podiam confessar sabendo, por esse estratagema, do que haviam sido acusados.
Mas os inquisidores não se comoveram muito com esse súbito arrependimento de Vila-Real. “Pareceu a todos os votos, excepto o deputado frei Pedro de Magalhães, que não estava alterado o assento do Conselho com o que confessou no auto, porque pelo modo de suas confissões se via que ele as fazia mais com intento de escapar da morte, do que por estar arrependido e por dizer que não tinha cúmplices, sendo o réu mui conhecido e tendo muitas comunicações nesta cidade, e não declarar senão pessoas ausentes e que estavam livres do Santo Ofício; pelo que o dito assento se devia dar à execução” (Coelho).
Aos quarenta e quatro anos de idade Vila-Real foi executado, em um Auto de Fé, junto com mais cinco relaxados, sendo dois em estátua pois haviam morrido no cárcere. Como Vila-Real havia abjurado seus pecados, foi executado no garrote. Só se queimavam vivos os hereges que não o faziam. A sentença, muito longa, em suas palavras finais dizia: “Christi Jesu nomine invocato, declaram o réu Manuel Fernandes Vila-Real por convicto e confesso no crime de heresia e apostasia, e que foi e ao presente é herege apóstata da nossa santa fé católica, e que incorreu em sentença de excomunhão maior e em confiscação de todos seus bens para o fisco e câmara real e nas mais penas em direito contra os semelhantes estabelecidas, e que, como herege apóstata, convicto, confesso, ficto, falso, simulado e impenitente, o condenam e relaxam á justiça secular, a quem pedem com muita instância se haja com ele benigna e piedosamente e não proceda a pena de morte nem a efusão de sangue”. Duarte Coelho, que reproduziu o texto acima em seu relato do processo, esclarece que embora as palavras finais pareçam indicar o contrário, na prática elas significavam a morte.
Impacto econômico da Inquisição
A perseguição aos Cristãos-novos, feita de parceria entre a Igreja e a Coroa, poderia, à primeira vista, ser um problema para os primeiros e uma solução para os segundos, já que estes tinham ao seu dispor um dispositivo para perseguir, condenar e confiscar as riquezas dos homens de negócios e impedir assim que a burguesia se fortalecesse e viesse a ser uma ameaça aos valores e modo de vida aristocráticos. Mas na prática, a Inquisição foi gerando um tal clima de insegurança e evasão de pessoas e capitais que o próprio império, como um todo, começou a empobrecer e perder o rumo.
Em 1646, em carta ao Rei, Padre Antonio Vieira deu a dimensão desse encolhimento: “Esta quebra há sido tão considerável nestes sessenta e seis anos últimos, que, lançando-se um tributo em tempo de El-Rei D. Sebastião sobre os homens de negócio para a jornada de África, subiu o orçamento da fazenda dos que havia em Lisboa a cinquenta milhões, não chegando a dois milhões todo o cabedal que hoje se maneja no Reino”.
Portugal, pela atuação do Santo Ofício, e apesar da dianteira que tomara na expansão marítima, foi aos poucos se tornando um país cada vez mais suspeito para se fazer negócios. “Note-se que a confiscação aplicava-se não só aos bens que o réu detinha à data da sua prisão mas a todos aqueles que possuíra desde a data em que praticara o crime […] eram anuladas as vendas e outras formas de alienação […] se um réu era condenado em estátua a confiscação executava-se nos bens dos herdeiros” (Saraiva). Imagine então a motivação para um negociante estrangeiro, para empreender junto com um português, se da noite para o dia alguém poderia acusá-lo de judaizar e de grande capitalista ele poderia passar à completa insolvência e anulação de suas transações retroativa à data de suas heresias.
Essa insegurança foi a causa de uma diminuição significativa na atividade econômica. Fábricas mudavam-se ou simplesmente fechavam. Toda patrimônio da burguesia portuguesa que tivesse liquidez era guardado em bancos e instituições mais seguras em outros países. Aos poucos, a própria coroa foi percebendo que a avidez da Inquisição estava asfixiando o país e, mesmo com os confiscos, dos quais pouca coisa chegava de fato aos cofres reais, o Santo Ofício constituía mais um obstáculo do que uma ajuda ao equilíbrio das finanças do reino.
São muito interessantes as cartas do Padre Antonio Vieira, endereçadas ao Rei, nas quais ele faz inúmeras sugestões sobre como remediar a situação. Ele sugere que os confiscos do Santo Ofício não poderiam mais avançar sobre os capitais das empresas dos Cristãos-novos, que fossem limitados apenas aos seus bens pessoais. Sugere que os “exames de limpeza” considerassem apenas o comportamento e a fé, não mais a ascendência de sangue da pessoa. Sugere ainda algo completamente iconoclasta: “que Vossa Majestade fizesse nobre a mercancia, de maneira que não só não tirasse mas desse positiva nobreza, ficando nobres todos os homens que fossem mercadores”. Argumenta ainda que a melhor maneira de acabar com o judaísmo seria incentivar, em vez de proibir como se fazia na época, os casamentos entre Cristãos-novos e velhos. “Maiormente, Senhor, que desta proibição e deste impedimento se segue o fim totalmente contrário à intenção de Vossa Alteza; porque se essa é extinguir nos homens de nação o Judaísmo, a experiência mostra que o meio mais proporcionado para o intento é o de se misturarem em casamentos com cristãos-velhos.” Esse argumento aparece entre vários críticos do Santo Ofício pois apoia-se no bom senso de que discriminar é também uma maneira eficaz de se preservar. A Inquisição foi também conhecida, entre seus críticos, pela alcunha de “Fábrica de Judeus”, pois a pressão para que cada réu denunciasse mais judaizantes fazia a população da “gente de nação” crescer geometricamente.
O fim da Inquisição
Cabe perguntar como que um sistema tão amplamente diagnosticado como prejudicial à saúde geral da nação pode se manter tanto tempo em pleno vigor. A resposta é que a Inquisição, mesmo quando começou a perder o apoio do rei, dos jesuítas e da burguesia, não só portuguesa (sua principal vítima) mas de toda a Europa, ainda jogava com o populacho que a apoiava nas perseguições e condenações. A Inquisição era boa em propaganda e em espetacularizar a luta contra os inimigos da fé. Não devia ser tão difícil convencer aquela população miserável, em um país em crise, que aqueles ricos mercadores, judeus, eram a origem de todos os males e tramavam tomar conta do império.
A Inquisição sabia também como manobrar a nobreza. Eram como funcionários públicos agraciados com mil privilégios e que faziam coro com o populacho a culpabilizar a burguesia pelos problemas do reino. Foram criados os “familiares do Santo Ofício”, recrutados sempre entre nobres e fidalgos. Esse era um posto de alto prestígio e honrarias. Eram eles que prendiam os acusados, que conduziam os réus para o cadafalso na grande festa que eram os Autos-de-fé e, além disso, ser um familiar do Santo Ofício era como que um super atestado de antecedentes e de limpeza de sangue. Com tantos falsos testemunhos e processos obscuros, era sempre uma garantia a mais.
Um fator de sua decadência foi a ineficiência que parece ser inerente a sistemas de apropriação indevida seja por que meio for. “Neste ciclo de delapidações e de rapinas é evidente que todo dinheiro entrado no sorvedouro era pouco. O Tribunal do Santo Ofício vivia em perpétuo desequilíbrio, buscando sempre novas receitas. A partir de 1708 foi desencadeada uma vaga de perseguições no Brasil, onde então prosperavam os senhores de engenhos de açúcar, e tais foram as devastações que o rei D. João V, em 1728, teve de proibir a confiscação dos engenhos” (Saraiva).
A derradeira perda de poder da Inquisição começou a tomar corpo com o Marquês de Pombal (1699 – 1782), sua ampla reforma para modernização da nação portuguesa forneceu os marcos decisivos que esvaziaram o poder que detinham há mais de duzentos anos. Em seu pacote, ficou o Tribunal do Santo Ofício subordinado ao Rei e não mais ao Papa. Em 1768 foram anuladas e destruídas as listas de Cristãos-novos que haviam contribuído para pagar perdões ao rei. Em 1773 suprimem-se a exigência de provas de limpeza de sangue para cargos públicos e honrarias. A Inquisição perdeu o sentido.
Para guardar
Este texto é parte de um estudo sobre preconceito. O seu papel, assim como de outros desta série, é trazer fatos históricos para que sejam analisados com o objetivo de construir um entendimento dos mecanismos que levam e operam na questão do preconceito de um indivíduo contra um outro, enquanto membros de grupos distintos.
Tendo este ângulo de análise como premissa, a perseguição aos Cristãos-novos permite uma série de observações interessantes de se comparar com outras situações que parecem igualmente estar no terreno que mais tarde tentaremos definir como preconceito.
É muito interessante notarmos a mudança drástica no relacionamento entre judeus e cristãos velhos quando os primeiros foram convertidos. Foi uma situação muito diferente, por exemplo, da escravidão transatlântica e que resultou mais tarde no racismo que conhecemos nas américas. O ponto sobre o qual quero chamar a atenção como diferencial entre os dois casos é que enquanto que existia uma separação do mundo dos africanos em relação aos europeus, os judeus, de tempos imemoriais, conviveram com estes últimos. Conheciam-se muito bem e, sem querer aplainar as diferenças culturais que eram muitas: na religião, no direito, nas tradições, ainda tinham um modo de vida muito semelhante ao dos europeus. Quando decidiam adotar o modo de vida cristão, não era possível se dizer à primeira vista que eram judeus.
Na península Ibérica, a situação pré-conversões era de um convívio dentro de um certo isolamento. Normalmente pacífico, mas que vez por outra eclodia em violências e expulsões. Como vimos, o “povo da nação” era útil ao reino, principalmente nas funções que consideramos hoje de alto nível mas que eram menosprezadas na época. Estavam no comércio, nas finanças e em algumas manufaturas e gozavam de relativa liberdade para assim ganhar o seu pão e prosperar em suas comunidades. Importante notar que embora menosprezadas moralmente essas ocupações mais e mais granjeavam poder a quem as dominasse. Era um tipo de poder que iria substituir em grande parte o poder que vem pelo uso da força, que seria banido dentro do Estado Moderno então em gestação.
Havia um entendimento intrínseco de uma superioridade dos cristãos. Isso é evidente pelo fato de que os judeus eram, antes de mais nada, permitidos e circunscritos a certos espaços de vivência e circulação e que pagavam tributos especiais por essa concessão. Essa superioridade tem então pelo menos um sentido político, de coerção. Em um plano mais transcendente vimos através do exemplo de Eclésia e Sinagogue que os cristãos faziam questão de menosprezar e representar a religião judaica como perdedora e ultrapassada.
Se os judeus nada podiam fazer quanto à dependência política e tinham que se arranjar para negociar e pagar por sua permanência em território predominantemente cristão. No que tange à religião, obviamente, eles, sem ostentar, consideravam que eles sim eram os justos, escolhidos, abençoados e viam os seguidores do Novo Testamento, no mínimo, como equivocados.
Até que ponto a possibilidade de miscigenação completa existia latente entre os judeus da península, isto é, o quanto estariam prontos a abdicar dos pilares de sua crença em troca de uma inclusão igualitária na sociedade portuguesa é um ponto que podemos questionar a partir da conversão forçada de D. Manuel em 1497.
Obviamente, viver como minoria e em posição de inferioridade, com diversas barreiras em suas atividades, com obrigação de portar símbolos costurados em suas vestes, com a obrigação de cobrir as janelas que dão para a rua para não poder conversar com os passantes e ainda estar sujeito a ofensas e perseguições sem que tenha causado mal algum e sem direito a apelação, tudo isso colocava um custo enorme no “ser judeu” em Portugal no século XV.
Será que o movimento de aceitar a fé local e predominante nas terras onde viviam, a fé cristã, converter-se, e ver todas as limitações e ódios se dissolverem como mágica, não estaria no horizonte dos judeus em Portugal? Qual seria a disposição deles para adotar uma nova religião e modo de vida e enfim livrarem-se do preconceito do qual eram objeto?
É bem questionável se teriam essa porta aberta de forma coletiva. Provavelmente era algo impensável de forma coletiva e a história não deu exemplos dessa possibilidade. A conversão forçada de D. Manuel não foi a primeira na história dos judeus na península. No século VI, os visigodos, cristãos, converteram e batizaram cerca de 90.000 judeus na região hoje da Espanha, e o que se seguiu foi que a discriminação e perseguições persistiram e até se agravaram. Deixaram de ser judeus para tornaram-se cripto-judeus, ou judeus escondidos, jamais plenamente aceitos como cristãos (Renata Rozental Sancovsky).
Esta é uma pesquisa ainda em andamento, mas até aqui, boa parte dos textos que estudei, mesmo científicos, descrevem e enfatizam essa questão sobre dois pilares, o primeiro é o da crueldade contra os judeus e o segundo é uma visão heróica da resistência dos mesmos em não mudar sua fé mesmo convertidos, mesmo praticando o catolicismo. O marranismo é colocado como uma resiliência exemplar de uma fé autêntica, de um povo fiel à sua cultura e origens. Sem dúvida as duas coisas são verdadeiras e há uma beleza romântica nessa autodeterminação. O que essa postura deixa de esclarecer é até que ponto não seria a recusa dos Cristãos-velhos em acolher fraternalmente os Cristãos-novos um importante motor dessa rebelde bravura.
Não podemos ser ingênuos a ponto de ignorar que os chefes religiosos disputam almas. Por conveniência ou por convicção, provavelmente pelos dois, não querem ver seu rebanho se dispersar, pois sua vida é pastorear o “seu” rebanho. A pressão do rabinato para que os conversos arriscassem suas vidas e não abandonassem as práticas da igreja de Moisés foi muitas vezes tão feroz quando a perseguição dos cristãos contra aqueles que o fizessem.
Alguns relatos nos permitem suspeitar que o rigor das lideranças religiosas não era assim tão prontamente compartilhado pela população. Muito significativo, por exemplo, é um problema salientado já no III Concílio de Sevilha, ainda no Século VII, no qual a nomenclatura cristã foi alertada sobre uma prática muito condenável na qual, “contando com o auxílio de vizinhos ou de amigos cristãos, os judeus (já batizados) substituíam os seus filhos legítimos, no momento dos sacramentos, por crianças provenientes de famílias cristãs” (Sancovsky). Ora, o que pode ser mais significativo de uma confiança absoluta e de uma proximidade fraternal do que emprestar seu filho para um vizinho apresentá-lo como seu? Essa conspiração na fraude evidencia uma relação de amizade que sobrepunha-se às obrigações morais e legais que tinham com as autoridades locais.
Manter-se no isolamento estando em convívio tão próximo demanda uma energia e um custo emocional enorme aos seres humanos. Parece que isso faz parte de algo como nossa natureza. Somos um pouco como esponjas a absorver, incorporar e mimetizar o nosso entorno. É por essas linhas que considero inevitável a miscigenação entre culturas que compartilham o mesmo espaço. Lutar contra ela é sempre uma violência que tem um altíssimo custo para a felicidade e realização das pessoas.
Nosso desejo e alegria quando nos sentimos queridos por aqueles que nos rodeiam é tão grande que tende a amolecer a acomodar em outros moldes nossas convicções. Deixa que existam desde que não sejam contrárias à nossa necessidade de viver bem com nossos semelhantes. Penso nisso quando leio o exemplo do menino Cristão-novo que queria levar o castiçal na missa católica. “… o mesmo Mestre, o Clérigo ignorante, o Irmão da Confraria, e o pior, mesmo o Pároco, já fazem distinção deste Menino e daqueles que são Cristãos velhos; porque estes são preferidos para ajudar à Missa, para levar o Castiçal, ou a vela branca, ou tomar a vara do Pálio. Esta preferência é bem notada daquele Menino ou Rapaz Cristão-novo; agasta-se, peleja e chora por se ver tratado com desprezo” (Sanches).
É claro que essas considerações são completamente sacrílegas e negam a fatuidade da esfera divina. Estou tratando essa esfera como contingencial, cultural, e assim como se é católico pode-se adotar outra religião qualquer se esse for o meio pelo qual poderemos viver bem com nossos pares. Mas como esse é um estudo sobre preconceito e não de teologia, vou guardar essa maneira de encarar, de questionar, o peso que nossas raízes e cultura podem ter sobre nosso futuro e felicidade de nossos filhos, tanto no caso em que nos aferramos a eles, como quando os deixamos amalgamar com os de outrem.
Através de relatos de época e levantamentos históricos este texto tenta penetrar na mentalidade do Brasil escravagista. O objetivo é entender as contradições de uma sociedade cristã que se permitiu prolongar por tanto tempo um regime tão desumano como a escravidão.
Brutalização
Os africanos que sobreviveram às guerras e emboscadas para captura de escravos, que suportaram a travessia em navios infectos e com todos os tipos de privações, humilhações e maus tratos, chegavam nas colônias obviamente arrasados física e moralmente. A cana de açúcar e outras commodities que utilizavam escravos como mão de obra, operavam contando que a oferta de braços era tão farta, o tráfico tão lucrativo, que qualquer cuidado a mais para melhorar a condição dos mesmos seria uma prodigalidade. Contribuía também a mentalidade de que era preciso renovar a cada instante, perante os cativos, a certeza de um poder absoluto. A pressão tinha que ser mantida. Era preciso não deixar espaço e energia para qualquer ameaça de auto confiança. Agredir e humilhar antes que qualquer sombra de amor próprio e dignidade se transformasse em coragem e revolta. Tratá-los com perversidade, ou no máximo com desprezo e indiferença pelos seus sofrimentos, desconsiderá-los como humanos, fazia parte do manual do traficante e mais tarde do colono também.
Todos os dispositivos que dão às gentes o sentimento de pertencimento, sociabilidade e auto-estima eram negados aos escravos. Em princípio, sobre nada em suas vidas podiam contar com regras e estabilidade. Laços de família podiam ser desfeitos, objetos de uso, de culto, de memória, podiam ser confiscados, hábitos de se reunir, de conversar, de brincar podiam ser proibidos e evitava-se que sob um mesmo teto convivessem escravos com um passado comum. Muitas teorias favoráveis à escravidão apoiavam-se no argumento de que os negros não seriam exatamente humanos, mas na prática, o tratamento que recebiam era tal, que qualquer ser humano o entraria em colapso ao cabo de não muito tempo. Pierre-Armand Dufau (1795-1877) francês de Bordeaux, escreveu um ensaio em 1829 com o título Da abolição gradual da escravidão nas colônias europeias, premiado pela Sociedade da Moral Cristã, no qual ele reflete exatamente sobre esse ponto: “Unicamente eles [os colonos] se recusam a atribuir o resultado à sua verdadeira causa; eles afirmam que os negros são degradados enquanto negros, mas a evidência nos mostra que não o são senão como escravos, e que a escravidão é a única fonte das imperfeições morais que se afirmam que são de sua natureza. […] Nada pode ser mais absurdo do que dizer que os negros são, como negros, e por necessidade, degradados e viciosos, que eles são, de sua própria natureza, mentirosos, ladrões, impudicos, crédulos e supersticiosos, envenenadores, dados à magia, incapazes de instrução e de compreender os deveres sociais, etc, e que é preciso sempre ter a mão levantada contra eles se quisermos reprimir as tendências sobre as quais sua razão, sempre em estado de infância, nada pode”.
Por convicção e conveniência os colonos agarravam-se a essa postura discriminatória e seus efeitos acabavam por corroer de fato a moral dos escravos. Isso é observado também por Perdigão Malheiro: “sem consideração alguma na sociedade, perde o escravo até a consciência da dignidade humana, e acaba quase por acreditar que ele não é realmente uma criatura igual aos demais homens livres, que é pouco mais que um irracional. E procede em conformidade desta errada crença, filha necessária da mesma escravidão. Outras vezes o ódio, a vingança o excitam a crueldades”. Essa constatação não é infelizmente exclusividade da condição de escravo. Em nossos dias a encontramos em grupos de dependentes de drogas, prostituição, convívio contínuo com a violência, como nas guerras, guerrilhas, e outras situações de vida, que operam uma aniquilação de toda auto-estima, capacidade de sociabilizar e noção de identidade ou pertencimento nos indivíduos.
Ser cristão tendo escravos
Ao mesmo tempo é fato que o colono, embora na posição de algoz, certamente mais confortável, não passava sem que esse ambiente anômalo tivesse seus efeitos sobre sua própria estrutura e personalidade. Seria desacreditar muito os seres humanos imaginarmos que aquele que chicoteava até esfolar seu semelhante, que o mutilava em amputações ou que dispunha de sua vida pelos motivos mais banais, depois disso, ia para casa e vivia normalmente como se nada tivesse acontecido. Praticamente todos os autores que testemunharam e se posicionaram contra a escravidão já apontavam esse efeito pernicioso para a sociedade como um todo. Viam o regime como um cancro, como um vício a destruir os valores cristãos e uma barreira aos padrões morais e desenvolvimento do país.
Augustin Cochin (1823-1872), francês, escritor e político, autor de um trabalho em dois volumes intitulado A abolição da escravidão, no qual desenvolve as contradições entre o cristianismo e a escravidão especialmente sob o ângulo da família, comenta sobre esse tema: “mas para falar dos brancos, são eles próprios vítimas da escravidão, lá [no Brasil] ela produz o mesmo que produz por toda parte, a corrupção da família, a corrupção da justiça e a corrupção da religião. Ora, quando as três coisas sagradas são aviltadas, o que sobra? […] Servir Deus possuindo escravos, fazer justiça possuindo escravos, ser pai possuindo escravos, ser marido possuindo escravos, aí está o que um europeu do século XIX não pode mais compreender, aí está o que se vê no Brasil”.
Perdigão Malheiro, como jurista, salienta a ação corrosiva de um poder ilimitado: “Os costumes ressentem-se infalivelmente dessa instituição [a escravidão] em todas as relações da vida privada e pública. O hábito do mando despótico no senhor, do trato desabrido contra o escravo, da indiferença do sofrimento deste, do castigo às vezes injusto e bárbaro ou excessivo, embotam-lhe em geral os melhores e mais generosos sentimentos do coração humano, e o amor do próximo: defeitos que se fazem depois sentir cruelmente nas relações de família e mesmo fora dela”.
É fato conhecido que um poder sem limites pode, com frequência, fazer emergir a perversidade e o sadismo. Uma vez que essas tendências sejam trazidas à tona elas anestesiam a censura e a experiência de seus extremos parece realimentar uma vontade, um vício ou uma cegueira, que leva o indivíduo a querer sempre mais e mais. William Ellery Channing (1780 – 1842), americano, foi um renomado teólogo, famoso por seus sermões e dedicado à causa abolicionista. Seu pensar profundamente cristão era muito tributário da ideia de que a virtude é um exercício de contenção de impulsos que trazemos em nossa natureza pecadora. Em 1835 publicou Escravidão, texto no qual ele destaca os absurdos da escravidão com muita boa argumentação pela via da filosofia da religião. A um certo ponto, Channing chama a nossa atenção também para os males que ela causa sobre os senhores. “A escravidão, acima de todas as outras influências, nutre a paixão pelo poder e seus correspondentes vícios. Não há paixão que precise de mais forte controle. Os piores crimes dos homens vieram do desejo de que fossem senhores, de curvar os outros sob seu jugo. A tendência natural, ao colocar outros sob nossa obediência, sob nossa vontade absoluta, é nos lançarmos a temerosas atividades de nosso lado imperioso, arrogante, orgulhoso e das interesseiras propensões de nossa natureza. O homem não pode, sem iminente perigo para sua virtude, possuir seu semelhante, ou usar a palavra de absoluto comando para com seu irmão. Deus nunca delegou esse poder. É uma usurpação do domínio de Deus e sua natural influência é produzir um espírito de superioridade para as leis divinas assim como para as leis humanas”.
Channing destaca ainda, pastor que era, o problema da licenciosidade que, também por uma inevitável fraqueza humana, instalava-se onde quer que a escravidão estivesse. “Aquele que invade os direitos domésticos de outros, sofre em seu próprio lar”. Nesse aspecto da vida familiar, como valor cristão, a escravidão tinha um efeito destruidor, embrutecedor e obstáculo para o desenvolvimento tanto dos colonos como dos escravos. Em uma outra passagem ele fala da impossibilidade de desenvolvimento pessoal, espiritual, para pessoas às quais se tolhe o direito de constituir família. “A casa dos escravos não merece esse nome. Para eles não é um santuário. É aberto à violação, insulto e ultraje. Suas crianças pertencem a outros, são mantidas por outros, estão à disposição de outros. A mais preciosa responsabilidade com a qual um coração pode ser carregado, a felicidade de seus filhos, ele não pode ter. Ele não vive para sua família, mas para um estranho. Ele não pode melhorar a vida dos seus; sua mulher e filha, ele não pode protege-las de insultos. Elas podem ser levadas embora pela vontade de um outro, vendidas como bestas de carga, enviadas para não se sabe onde, e onde ele não poderá alcança-las ou enviar notícias e mensagens de amor”.
A total falta de assistência ou preocupação para com os escravos tinha o efeito de que a taxa de natalidade entre eles era muito baixa e também, no outro extremo, casos de suicídios eram comuns. Enquanto o tráfico foi livre e abundante os colonos achavam mais fácil e proveitoso manter um regime desumano de fome e privações pois acreditavam que assim corriam menores riscos com revoltas, como foi dito logo acima. Nada que pudesse dar trânsito ao desenvolvimento intelectual ou espiritual, engajamento, esperança, vontade de melhorar de vida, era, em princípio, bem visto. Quando questionados pelos ativistas contrários à escravidão sobre seus métodos cruéis diziam que havia muito exagero e que o colono que havia pago caro por um escravo, que investira pelo menos dois anos a treiná-lo no serviço, não iria cometer a insensatez de tratá-lo mal ou perdê-lo. A esse tipo de argumento o francês abolicionista, Victor Schoelcher (1804 – 1893) fez a seguinte observação: “Como que um homem acostumado a ver sua palavra soberana, sua pétrea vontade sempre obedecida, hesitará a sacrificar um negro temerário o bastante para lhe resistir? Quem, entre nós em um momento de impaciência nunca quebrou um objeto caro e precioso do qual a perda era irreparável?”.
Exemplos desses acessos de ódio não faltam, Colonel Malenfant, um colono e funcionário do governo francês, rico proprietário na ilha de São Domingos (compreende hoje República Dominicana e Haiti), conta em seu livro de 1814, Sobre as colônias, que estando na ilha de São Domingos, presenciou quando dois carpinteiros, em um acesso de raiva, mataram a golpes de martelo “um negro que valia algo em torno de doze mil francos, para se consolarem, quando indagados sobre seus interesses, diziam: a costa da África é uma boa mãe”.
Seria certamente fantasioso imaginar que para as Américas dirigiram-se centenas de milhares de europeus psicopatas. É bem alardeado que não foi a fina flor que se arriscou a tentar a vida nos trópicos, mas parece evidente que, quando analisamos o volume, o grau e o longo período pelo qual esses abusos se estenderam, devemos procurar algum fator ou o quadro mais complexo que, como uma doença, gerou essas distorções, em vez de correr a afirmar que todos eram criminosos ou torturadores natos. Joseph Elzéar Morénas (1776 – 1830), refletindo sobre isso, faz a seguinte colocação: “Esses colonos são, ao final, as pessoas mais honestas do mundo, bons, serviçais, justos e humanos, desde que não seja nenhuma questão sobre negro ou mulato. Eles são pessoas boas, fanatizadas por preconceitos de infância, não são precisamente as pessoas que são culpadas, é o seu sistema que é criminoso. Para que fossem mais sábios e mais felizes, não precisariam mais do que desaprender, mas, como diz Montaigne, é sempre o mais difícil em nossa educação”.
Escravidão, fazenda e cidade
O fim da escravidão em todos países das Américas não foi um ato de ruptura. O sistema foi se corroendo lentamente e quando o aparato legislativo chegava para estabelecer o fim do cativeiro, a liberdade imediata e incondicional de todos os escravos, o sistema em si já estava muito debilitado e desacreditado pela maioria da população livre. Foram tantas as leis, editais reais, acordos internacionais, bulas papais, compromissos, recomendações e outras papeladas que desde o século XVI visavam restringir os horrores do tráfico e da escravidão, e foram sempre, em maior ou menor grau, solenemente ignorados pelos senhores de escravos, políticos, traficantes e todos os envolvidos, que as leis sobre a completa abolição, se não foram outras na fila de medidas inócuas, foi apenas porque o momento enfim havia chegado.
A escravidão, já na época da expansão marítima portuguesa e espanhola, nunca foi uma unanimidade entre os europeus. Para muitos ela era tão chocante quanto para qualquer um de nós hoje. Inicialmente, como foi visto no texto Índios e Colonos no Brasil, a posição oficial da coroa e da igreja sempre foi a de tratar os nativos com dignidade. Era a dignidade de uma nação submissa, invadida, mas já havia o conceito militar/cavaleiresco de que mesmo os vencidos deveriam se tratados dignamente.
Mais tarde, quando o tráfico de escravos africanos se tornou a grande força de mão de obra a viabilizar a expansão da economia colonial, ainda se editavam leis que pareciam querer abrandar a forma desumana com que eram tratados os escravos. Os europeus que viviam longe da empresa colonial condenavam a prática e também o princípio do trabalho escravo. Este era considerado imoral e anticristão. Porém, deixavam e esperavam que “alguém” o manejasse , pois a sociedade como um todo movia-se com o dinheiro que vinha dessa indústria.
Era uma triangulação hipócrita que não deveria surpreender o cidadão contemporâneo, pois ela é muito parecida com o que acontece hoje entre classe média, polícia e bolsões de pobreza. Sabemos que as práticas são muitas vezes abusivas mas tacitamente espera-se, seja por medo, por conveniência ou por preconceito, que a mão pesada seja mantida. Enquanto isso todos reprovam a brutalidade da repressão.
Como consequência do desenvolvimento e emancipação das colônias em nações com instituições, passado próprio e uma ideia nascente, talvez apenas latente, de cultura local autônoma, o trabalho escravo foi ficando desajustado e anacrônico também deste lado do Atlântico. Importamos da Europa a rejeição ao cativeiro. Foi muito forte, como se pode notar até nas referências deste texto, a influência da argumentação anti-tráfico e anti-escravidão de autores europeus.
Ao entrarmos no século XIX já ficava cada vez mais distante o tempo da colônia como pura máquina de fazer dinheiro e proibida de florescer, sem imprensa, sem manufatura, sem escolas, sem comunicação com o mundo, enfim, sem direito a almejar transformar-se em uma nação com sua identidade, seu povo e pluralidade de setores e atividades. A nova mentalidade mais urbana, intelectualizada, atenta ao pensamento e transformações do Iluminismo francês, republicana, liberal e progressista, não poderia ser outra coisa senão abolicionista.
Havia também muita pressão internacional, em especial da Inglaterra, que por interesse disfarçado de humanidade colocava-se no papel de fiscalizar as restrições ao tráfico assinadas com nosso imperador. “E não contentes, vinham os seus cruzeiros fazer a polícia dos nossos mares territoriais e até dos nossos portos, visitando os navios, apreendendo-os e perseguindo-os mesmo debaixo das nossas baterias, e cometendo até assassinatos em passageiros, afrontando assim ignominiosamente a soberania e dignidade do Império e os brios nacionais” (Malheiro). Apenas de 1849 a 1851, foram tomadas e destruídas 90 embarcações dessa forma.
O conservadorismo mais ferrenho estava muito naturalmente do lado dos monarquistas e produtores rurais, pois estes não sabiam o que poderia ser mais barato e proporcionar melhores margens a seus produtos que a escravidão. Mais importante talvez, tinham uma mentalidade herdeira de um passado feudal. Assimilavam com naturalidade que uma “pessoa importante”, rica mesmo não sendo nobre, proprietária de uma unidade como um engenho, deveria ter sua força armada, sua justiça particular, usar de coerção não apenas em castigos físicos de seus escravos mas de qualquer pessoa sob sua influência. Podiam e exerciam o poder de decidir sobre uma série de aspectos da vida privada também dos cidadãos livres. Ao mesmo tempo, também típico de estruturas organizadas por vassalagem, respeitavam seus pares, tinham um código de honra que incluía esse corporativismo com outros senhores e fidelidade à coroa. Não se deve estranhar o tratamento que dispensavam aos seus escravos. Ele era apenas a manifestação de uma mentalidade patriarcal, senhorial que regrava as vidas de todos sob sua tutela, livres ou escravos. O tipo de trabalho nos engenhos oferecia o ambiente adequado para que estes últimos fossem tratados como bestas. A ausência de autoridades institucionalizadas, criadas pelo Estado Moderno, polícia e exército profissionais em uma hierarquia de governo central e democrático, deixava para aquelas paisagens essa prorrogação, essa aberração de um sistema organizado em pequenos feudos que eram as grandes fazendas de cana de açúcar e seus pequenos vilarejos anexos. O trabalho forçado, escravo, encaixava-se muito naturalmente nesse arranjo e fazia parte de sua economia e cultura.
No texto Portugal, judeus e a Inquisição, as características dessa mentalidade aristocrática portuguesa, e como ela se arranjava com a religião católica, teoricamente generosa e inclusiva, são vistas com mais detalhes. Entender o Brasil escravagista passa muito por conhecer o que se pensava na metrópole.
Nas cidades, nas residências e pequenos comércios ou manufaturas, a situação era bem diferente. No meio urbano havia uma autoridade de Estado e não se supunha que cidadãos pudessem dispor de meios violentos, feitores, capitães do mato e jagunços armados, necessários para a manutenção da escravidão, com a mesma proporção que nas fazendas. Os trabalhos alocados aos escravos também não eram tão pesados como no campo. Eram muito diversificados e em alguns casos até refinados. Os escravos da cidade tinham uma possibilidade de “carreira” que podia até culminar na sua libertação. Escravos podiam progredir, calçar sapatos, comandar outros escravos e assim deixavam a condição de últimos da fila. Por força da proximidade, como serviçais, usufruíam do conforto das casas e instalações de seus senhores de uma forma impensável para um escravo de senzala.
Nas cidades, a escravidão às vezes pode nos parecer quase que um vício, real dependência de uma droga que seduzia a sociedade, anestesiava sua moral e obliterava sua visão. Talvez uma tradição, mas uma tradição ruim. Não fosse isso, talvez seria mais facilmente substituída pelo trabalho remunerado. A escravidão era o meio para manter viva a aversão que pessoas distintas deviam, por obrigação do posto, ostentar por uma categoria de trabalhos considerados indignos. No texto Portugal, judeus e a Inquisição, a gênese dessa aversão é analisada mais em detalhes e vimos lá que os ibéricos eram ainda um caso extremo na Europa . Possuir escravos era um símbolo de poder e refinamento. Mas o anacronismo desse luxo aristocrático em uma sociedade que queria ao mesmo tempo ser progressista foi ficando cada vez mais evidente. Foi essa contradição que foi abrindo o caminho para a abolição.
Escravidão tardia
Os conflitos de uma sociedade escravocrata no século XIX são detalhadamente representados, e com fina ironia comentados por Jean-Baptiste Debret (1768– 1848) em suas famosas litografias. Suas imagens, realizadas mesmo às vésperas da invenção da fotografia, são como instantâneos, são de extremo valor para nos dar substância para as contradições que vivia essa sociedade, a candura com que eram bons cristãos e abomináveis escravocratas ao mesmo tempo. Vejamos algumas delas. A primeira, intitulada Um funcionário do governo saindo de sua casa com a família, evidencia uma gradação de papéis que introduz nuances e vai muito além do registro binário entre o senhor e escravo. Debret descreve-a assim: “
“A cena desenhada aqui representa a saída para um passeio de uma família de posses medianas na qual o chefe é um empregado do governo. De acordo com os usos antigos ainda observados nessa classe, o chefe da família vai à frente seguido imediatamente de suas crianças colocadas em ordem de idade com a mais nova sempre à frente. Vem em seguida a mãe, ainda grávida, atrás dela sua camareira, escrava mulata, infinitamente melhor considerada no trabalho que uma escrava negra, a seguir a ama-de-leite, negra, o escravo da ama, o negro doméstico do senhor, um jovem escravo que aprende o serviço, seguido de um negro novo, recentemente adquirido, escravo de todos os outros, e cuja inteligência natural, mais ou menos ativa, deverá se desenvolver pouco a pouco a golpes de chicote; o que guarda a casa é o cozinheiro [os itálicos são do próprio Debret]”.
Vamos diretamente à segunda, Uma dama brasileria em sua casa:
Debret inicia lembrando que a colonização portuguesa tendia a privar as colônias de instrução e que as mulheres saiam pouco, mostravam-se pouco e ficavam assim praticamente limitadas aos cuidados do lar. “Então eu tentei representar a solidão de uma mãe de família, de posses medianas, em seu lar. Nós a vemos sentada, como de costume, em sua marquesa […] com as pernas dobradas para baixo à moda asiática. Imediatamente ao seu lado e bem ao seu alcance, encontra-se o gongá (cesto) destinado a conter os trabalhos de costura. Entreaberto, ele deixa passar a ponta do chicote, enorme cravache [chicote usado em cavalos, no francês] feito inteiramente de couro, instrumento de correção com o qual os senhores ameaçam seus escravos a toda hora. Do mesmo lado, o pequeno mico-leão, amarrado por sua correntinha à um dos encostos do móvel, serve de inocente distração à sua senhora; bem que escravo privilegiado, feliz de mover-se sem parar e de suas gracinhas, ele não é menos reprimido de tempos em tempos ,como os outros, pelas ameaças do chicote. A camareira, negra, trabalha, sentada no chão, aos pés de madame a senhora; nós reconhecemos o luxo e as prerrogativas desta primeira escrava pelo comprimento de seus cabelos penteados, formando, por assim dizer, um corpo cilíndrico desprovido de ornamentos e colado à sua cabeça; penteado sem gosto e característico da escrava de uma família pouco opulenta. A filha da casa, pouco avançada na leitura, ainda que já bem grande, conserva a mesma atitude de sua mãe, mas colocada em um assento infinitamente menos cômodo, se esforça em nomear as primeiras letras do alfabeto traçadas em um papel que ela segura nas mãos. À sua direita, uma outra escrava cujos cabelos cortados bem curtos, designam uma posição inferior, sentada um pouco mais longe da senhora está igualmente ocupada com um trabalho de agulha. Do mesmo lado, avança um moleque, (jovem escravo negro) aportando um enorme copo de água, solicitado frequentemente ao longo do dia para matar a sede provocada pelo abuso de alimentos apimentados ou de conservas açucaradas. Os dois pequenos negrinhos [petits négrillons, no francês], mal na idade de andar, admitidos a compartilhar os privilégios do mico-leão no quarto da senhora da casa, experimentam suas forças em liberdade, sobre o tapete da camareira. Essa pequena população nascente, fruto da escravidão, tornar-se-a ao crescer um alvo de especulação muito lucrativo para o proprietário e, dentro de um inventário, são considerados como um imóvel”.
Nesta outra litografia temos a cena de um pequeno evento social. Seu título é Uma visita no interior. Foi realizada Debret nos conta sobre a rica senhora e sua família : “Quanto aos seus hábitos, nós a encontramos, segundo o uso de seus antepassados, exclusivamente ocupada com a supervisão e manutenção de sua numerosa família, ordinariamente composta de doze a quatorze filhos, e às vezes mais; porém, sujeita pelas exigências dos negócios a ter seus filhos em ocupações distantes, ela encontra consolação na gratidão de suas filhas que se revesam para vir, com suas pequenas famílias, lhe fazer companhia e enriquecer instantaneamente sua solidão de uma nova filiação igualmente cara ao seu coração […] Ao pé da marquesa, sentada sobre um tapete de Angola, uma de suas filhas, casada e mãe, aleita seu filho mais novo; atrás e perto dela, de joelhos, está sua negra, sua camareira; uma outra de suas escravas entrega o segundo filho de sua jovem senhora, o qual se recusa aos carinhos dessa senhorita estrangeira. Enfim, no primeiro plano, o primogênito da família, tão levado como seus dois irmãos, abandonando perto de uma negra algumas frutas que ele se dispunha a comer, se esconde sob a marquesa para subtrair-se aos olhares dos estrangeiros que entram; vício de educação muito comum a todas as famílias brasileiras. […] Atrás da senhora da casa, uma de suas jovens escravas encarregada da entediante tarefa de espantar moscas e pernilongos agitando dois ramos de árvores que ela segura com as mãos, oferece ao europeu o exemplo de um adicional de tristeza em seu cativeiro: o aflitivo espetáculo da máscara de ferro da qual o rosto dessa vítima está envelopado; sinistro indicativo da resolução que ela havia tomado de se matar comendo terra. Ao centro do grupo mais luminoso, a vizinha, de uma feliz obesidade e uma robusta saúde, apresenta-se majestosamente cercada de suas duas negras mocambas (camareiras), das quais uma se apressa a livrá-la de seu xale e a outra a lhe desembaraçar de seu chapéu de palha que ela ainda tem em sua mão”.
Esse corte brusco, da escrava frustrada em seu suicídio, para a vizinha de “robusta saúde” é sem dúvida intencional. Debret leva assim o leitor a experimentar passar, com seu texto fluido, por cima de um terrível drama como se fosse uma ligeira curiosidade ou um detalhe da decoração. Fazendo isso ele nos coloca na mesma atitude displicente que anima o alegre encontro que transcorria alheio à presença da jovem que tinha ali expresso, materializado, o desejo mais íntimo, mais triste, desesperado e inconfessável que alguém possa ter, que é aquele de por fim à própria vida. Todas as amabilidades, os abraços, as mãos estendidas, as criancinhas mimadas, esses laços de família e de amizade ali escancarados, tingem-se de uma crueldade inaudita se por um instante considerarmos a moça com a máscara.
Uma cena assim, uma vida assim, não poderia acontecer aqui no Brasil sem uma multidão de escravos para lhe dar sustento. Em 1662, o procurador do Maranhão deu um parecer que resultou na expulsão dos jesuítas daquele estado. Em uma longa resposta (reproduzida por Mello Moraes em 1858), padre Antonio Vieira faz uma análise da economia local. A um certo ponto pondera que os índios eram muito fracos e despreparados para o trabalho e acabavam morrendo facilmente. Observa então que: “como nas suas vidas [dos índios] consiste toda a riqueza e remédio daqueles moradores [colonos], é muito ordinário virem a cair em pouco tempo em grande pobreza os que se tinham por mais ricos e afazendados”. Sem escravos a roda não girava e o colono se via rapidamente à míngua e no meio do nada. O padre segue nesse raciocínio e recomenda a importação de negros de Angola, pois estes sim, eram robustos o bastante para suportar a carga.
Na visão dos colonos, sem escravos vindos da África, essas senhoras retratadas por Debret, estariam cuidando das tarefas da casa, lavando roupa, varrendo, lidando em pequenas hortas, galinheiros e coisas assim. Seus maridos estariam cortando lenha e capinando de sol a sol. Comeriam do que plantassem ou morreriam de fome. Talvez alguns colonos protestantes na América do Norte teriam esse sonho. Para o português católico isso era um pesadelo. Já bastava o sacrifício que fora deixar a Portugal querida, precisavam então pelo menos viver dignamente, segundo um ideal mínimo de distinção e nobreza. Como prêmio deveriam, mereceriam com certeza, enriquecer rapidamente. Dentro de sua visão de vida e valores, os escravos eram “toda a riqueza e remédio” que tinham, como bem colocou o Padre Vieira.
Para penetrar mais na mentalidade da época escravagista Debret é um ótimo guia, pois percebia todos os estratagemas dos colonos para contornarem a condição de estarem na periferia do mundo civilizado, desprezava-os, mas não podia negar que eram eles os poderosos e isto obrigava-o a jogar o jogo, fingir estar diante de uma verdadeira aristocracia; restava-lhe então o sarcasmo, a arma dos impotentes. E ele foi muito sarcástico. Na litografia número 6, Uma dama brasileria em sua casa, a calma de seus personagens entretidos em suas distrações remete a uma intimidade sem tensões, uma afetividade silenciosa parece permear todo o ambiente. A jovem senhora domina a cena, até por suas proporções agigantadas em relação aos outros. Seu ar maternal parece distribuir-se igualmente à sua filha e a todos os presentes, aos escravos e aos dois bebês que brincam com tranquilidade. Mas toda essa calma é enganadora. Debret começa por nos instruir da presença do chicote bem ao alcance de suas mãos e comenta que a frequência com que dele ela se servia. Faz uma associação do pequeno mico-leão preso por uma corrente, com os dois bebês que não são mais do que “um alvo de especulação muito lucrativo”. Já desfaz assim qualquer esperança de que a jovem senhora teria por eles alguma consideração maior do que por seu mico acorrentado. Não deixa também de alfinetar a falta de instrução e a dificuldade da filha “já bem grande” que a custo consegue identificar as letras do alfabeto.
Na litografia número 5, Um funcionário do governo saindo de sua casa com a família, a fila indiana evidencia uma gradação muito suave do todo poderoso e rechonchudo senhor até o escravo recém adquirido, esquálido e inexpressivo, o “escravo de todos”. Tal arranjo produz noções de valor e progresso, ou pelo menos o conforto de que existe alguém em situação pior; um alvo disponível para ódio ou compaixão. A visão da hierarquia, talvez tenha freado em muitos escravos os desesperados e últimos impulsos que seriam fugir, rebelar-se ou comer terra. O clima de terror dos primeiros séculos que fazia das fazendas algo como colônias penais, nas quais todo escravo era apenas uma besta de carga, foi aos poucos abrindo para formas de inserção dos negros na sociedade. A fila na litografia número 5 de Debret dá uma posição, uma gradação e diferentes papéis para diferentes escravos.
A escravidão no século XIX já era muito diversificada. À figura do homem-máquina, puro motor a girar os moinhos dos engenhos e cortar cana, transportar carga, somaram-se atividades até refinadas e um emaranhado de papéis e obrigações. Nas fazendas muitos senhores autorizavam o escravo a trabalhar um dia da semana para seu próprio proveito. “Não é raro, sobretudo no campo, ver entre nós cultivarem escravos para si terras nas fazendas dos senhores, de consentimento destes; fazem seus todos os frutos, que são seu pecúlio” (Malheiro Vol I). Esse “pecúlio”, patrimônio, já era em si uma alteração significativa, pois a pretensa condição de “coisa”, do escravo, não o permitia, em princípio, nada possuir e nada transmitir. A ideia inicial de deixar que se cultivassem pequenas hortas dentro da fazenda era mais a de aliviar o custo com a alimentação dos escravos. Em especial nos primeiros séculos, ou nas primeiras empreitadas agrícolas ou de mineração, o problema de alimentar os escravos era um ponto logístico complicado. Não havia um “mercado” onde adquirir víveres. Hans Staden, em 1557, descreve o comércio bizarro que se viam obrigados a fazer os portugueses com seus inimigos os tupinambás. Vinham de barco de São Vicente até Ubatuba, faziam a transação do barco mesmo: “Dão-lhes facas e anzóis, por farinha de mandioca, que os selvagens tem em muitos lugares, e que o portugueses, que tem muitos escravos para as plantações de cana, precisam para o sustento dos mesmos”. Concluída a transação, batiam em retirada sob ataque dos mesmos indígenas. Permitir o trabalho autônomo dos escravos foi então uma maneira de aliviar a pressão por alimentos e surtia sem dúvida também um efeito motivacional em vidas tão miseráveis. Malenfant, fala da dedicação dos cativos a seus negócios: “Aos domingos pela manhã, alguns trabalhavam em suas pequenas hortas enquanto outros iam à vila vender legumes, frutas que eles colhiam e aves e porcos que os chefes criavam [chefes entre os escravos]. Esse dinheiro era imediatamente gasto em objetos de nossa manufatura dos quais lhes era permitido fazer uso”. Malenfant assinala aí a oportunidade perdida, que os colonos não consideravam, de criarem mercados para seus produtos simplesmente dando mais liberdade às iniciativas de seus próprios escravos que poderiam ser também seus clientes.
No Brasil não era diferente. Um uso também frequente para os resultados desse comércio independente ao qual alguns escravos tinham acesso era a própria alforria, pois com seus pecúlios podiam comprar a si mesmos de seus proprietários. Nas cidades existiam os “negros de ganho”. Era uma forma de rentabilizar o escravo fazendo-o trabalhar em tarefas como de carregadores, vendedores de doces, de aves, utensílios e qualquer outro serviço ou comércio ambulante. Debret o descreve assim: “É a esses negros agenciados, que perambulam com um cesto nas mãos, um pano no pescoço para fazer apoio de cabeça ou um turbante, que pertence o nome de negros de ganho, espalhados em multidão pelas ruas. Eles se apresentam tão logo você saia na porta e tornaram-se sumamente indispensáveis pelo orgulho e indolência dos portugueses no Brasil, que de imediato desaprovam qualquer um que apareça na rua com o menor pacote em mãos. Exigência levada tão longe que à época de nossa chegada, nós vimos um de nossos vizinhos, no Rio de Janeiro, voltando para casa gravemente seguido de um negro cujo enorme cesto não continha, nesse momento, nada mais que um bastão de cera [do tamanho de um giz de cera, usado para selar cartas a quente] e duas plumas novas [para escrever]”.
O negro de ganho passava seu dia na rua e, por dificuldade de supervisão sobre sua real receita, impunha-lhe o seu dono um valor diário que era acertado em geral semanalmente. O que passasse disso era seu. Em muitos casos trabalhavam também como assalariados mas o salário era pago diretamente ao seu senhor. Esse era o meio de vida de muitas viúvas que não tinham outra fonte de renda que aquela que podiam lhe trazer os seus escravos, talvez até um único escravo ou escrava. Tal fenômeno fez sugir também uma figura que Debret nos descreve como petit rentier. “Depois de termos dado uma olhada rápida sobre a existência deliciosa do rico negociante brasileiro do Rio de Janeiro, nós encontramos, dentro da classe média e a mais numerosa, o petit rentier, [rentier, rentista em português, aquele que vive de renda] possuidor de um ou dois escravos negros trabalhadores, dos quais o produto diário, recolhido ao final de cada semana, é suficiente à sua existência. Satisfeito desta fortuna, ou, para dizer melhor, da posse desse imóvel vivo, adquirido por herança ou pelo fruto de suas economias, ele usa filosoficamente o resto de sua vida na monotonia de seus passatempos habituais. Esse homem pacífico, religioso, observador dos usos brasileiros das épocas as mais recuadas, levanta-se antes do nascer do sol, percorre com frescor uma parte da cidade, entra dentro da primeira igreja aberta e faz suas preces ou acompanha uma missa. A continuação de seu passeio prolonga-se até as seis horas da manhã. Ele volta, troca de roupa, toma café da manhã, repousa, cuida se suas vestes, come ao meio dia, faz sua sesta até duas ou três horas da tarde, refaz uma segunda toalete e sai novamente às quatro horas. É então por volta das quatro da tarde que se vêem chegar os rentiers de todas as ruas adjacentes à praça do Palácio para sentarem-se sobre o parapeito das docas onde eles têm o costume de vir respirar o frescor até a Ave Maria, de 6 a 7 da noite”.
Esse tipo de arranjo era muito comum e seria como um aluguel ou uma carteira de títulos financeiros nos dias de hoje. Viam o dispositivo simplesmente como a exploração de um bem, de uma propriedade, ou “imóvel vivo”, nas palavras de Debret. Sem que fosse essa propriamente a intenção, proporcionavam aos escravos, ainda que dentro da escravidão, um grau de liberdade bem maior que o regime fechado. Era o equivalente urbano da exploração de pequenas hortas e criação de animais que, como vimos, acontecia nas fazendas. Chegando ao ponto, nas cidades, em que o escravo podia até morar separado de seu senhor. “Mesmo nas cidades e povoados alguns permitem que os seus escravos trabalhem como livres, dando-lhes porém um certo jornal; [aos senhores] o excesso é seu pecúlio: — e que até vivam em casas que não as dos senhores, com mais liberdade” (Malheiro Vol I).
Mesmo homens livres chegaram a um momento a ser usados como negros de ganho através de um artifício burocrático. A crescente repressão ao tráfico desde o início do século XIX, com suas muitas leis e acordos, sempre desrespeitados, arrastou-se e só terminou mesmo no início dos anos da década de 1850. Nesse período era comum que negreiros capturados pelos ingleses acabassem despejando uma quantidade de “libertos” em portos brasileiros. Pensou-se em enviá-los de volta para a África, para Serra Leoa ou Libéria, sem mesmo considerar de onde vinham: era tudo África. Mas sem entrar nessa questão de para onde, não havia a menor disposição para custear tais viagens e eles ficavam por aqui mesmo. Em um primeiro momento eram enviados para verdadeiros depósitos de gente. Depois o governo tentou aloca-los em serviços públicos e finalmente permitiu que particulares arrematassem os seus serviços. Seriam como tutores, pessoas de bem que iriam contratá-los como trabalhadores e cuidariam de sua integração à vida e à civilização. Comprometiam-se a pagar 12.000 por ano, colocavam o infeliz como negro de ganho e ficavam com o excedente que segundo Malheiro superava em muito esse compromisso. Portanto não tardou para que o cuidado tutelar transforma-se o homem livre em um gênero em todos os pontos análogo ao da escravidão. “Mas a sorte dessa mísera gente foi de fato igual, senão pior que a dos escravos, quer os dados a serviço urbano, quer ao rural. De raça negra como os outros, eram igualados em razão da cor, porém, não sendo escravos, eram menos bem tratados do que eles, ou quando muito do mesmo modo. Serviço e trabalho dia e noite; castigos; falta até do necessário, ou escassez de alimentação e vestuário; dormiam pelo chão, em lugares impróprios, expostos às enfermidades; a educação era letra morta. Os filhos [de mulheres negras recolhidas nessa condição tutelar] erão lançados às rodas dos enjeitados a fim de alugarem as mães para amas de leite” (Malheiro Vol II). Roda dos enjeitados era um dispositivo como esses que muitos prédios residenciais têm hoje em dia para entrega de pizzas, nos quais, pelo lado de fora ,deposita-se a entrega, e girando a roda 180º a coisa depositada passa para o lado de dentro do estabelecimento. No caso, era um orfanato e local para crianças enjeitadas por que motivos fossem.
Cabe perguntar como que se mantinham tais restrições a pessoas que podiam circular livremente pela rua. Sobre isso é preciso lembrar que se por um lado os escravos voltavam e submetiam-se aos seus senhores por falta de opção melhor, por ser este um meio de vida, uma licença para se trabalhar, ainda que pagando o grosso de seu rendimento por essa simples licença, é fato também que os senhores contavam com muita ajuda do governo para a repressão. Havia toque de recolher para escravos no Rio de Janeiro às 22 horas. A cidade era muito policiada e calma. James Fletcher (1823–1901), americano que viajou mais de 5.000 km no Brasil, publicou em 1868 um livro intitulado Brasil e os brasileiros , no qual descreve, com detalhes de um bom observador, nossa sociedade e natureza no meio do século XIX. Sobre essa questão da segurança ele diz “A polícia é armada. Durante o dia você os encontra isolados ou aos pares tomando posição em locais convenientes para observar os escravos e todos os outros suspeitos de possíveis desordens. […] Eu encontrei poucas cidades mais ordeiras que o Rio de Janeiro; e a polícia está geralmente em alerta; de tal modo que em comparação com Nova Iorque e Filadélfia, banditismos raramente ocorrem. Eu sinto mais segurança pessoal a altas horas da noite no Rio do que eu sentiria em Nova Iorque”.
A polícia estava lá para “observar escravos e todos os outros suspeitos”. A polícia era um braço importante dessa repressão preventiva que se exercia contra todos os negros, mesmo os libertos. Talvez esse seria o seu principal papel em uma cidade onde a cada 3 habitantes dois eram escravos. As fazendas e engenhos possuíam sua própria guarda. Nas cidades era a polícia que fazia o trabalho do feitor.
É dessa forma que podemos compreender como é que mesmo aquela frágil viúva idosa, dona de um escravo jovem e vigoroso, dispunha de meios para manter viva sua autoridade na memória de seu cativo. Ela podia, por exemplo, encomendar para que ele fosse açoitado. Era um serviço público oferecido para os delitos mais graves dos escravos tais como fuga, roubo doméstico e agressões ao seu senhor. “Nessa circunstância, o senhor requer a aplicação da lei e obtém uma autorização do intendente da polícia que lhe concede o direito de determinar, de acordo com a natureza do delito, o número adequado de chibatadas, de cinquenta a duzentas. O máximo da pena só pode ser administrado em duas vezes, reservando um dia de intervalo, mas as penas medianas são as mais utilizadas. É portanto costume no Rio de Janeiro e nas grandes cidades deste império, que o senhor que queira punir seu negro, o faça através de um soldado da polícia do calabouço (prisão)” (Debret). Por esse serviço pagava-se um certo valor bem acessível de acordo com o número de chibatadas solicitadas.
O uso da polícia, do aparelho do Estado como um todo, na forma de extensão da força de repressão aos escravos incorporou-se ao sistema da escravidão em si. O rito processual parecia correr em ordem: um cidadão prestava uma queixa sobre um delito, abria-se um processo, réu era julgado, eventualmente condenado e a pena aplicada pela autoridade competente. Até aí estamos dentro do sistema usual de repressão ao crime de qualquer sociedade moderna. Mas a distorção é que o escravo não era ouvido, apenas o senhor instruía o processo e a pena era um castigo físico brutal.
Na Martinica, em 1822, instituiu-se uma corte militar que examinaria os casos de envenenamentos dos senhores pelos escravos. Parece que esse era um problema real e trataram de criar uma força tarefa para ataca-lo de maneira organizada e eficaz. Para não criar alarme por toda a colônia, essa comissão foi mantida secreta o quanto se podia e ela circulava conversando com os senhores e analisando os casos a portas fechadas. Os réus eram acusados sem o saber, julgados e condenados no espaço de um só dia. “Os escravos supliciados dos quais resulta a morte nessas aberrações jurídicas, são pagos as seus senhores à razão de 2000 libras por cabeça. O que é horrível a pensar e difícil de não acreditar, após o concurso de um grande número de probabilidades, é que os colonos tiveram a infâmia, a celeridade, de especular sobre esses homicídios. O que é certo é que os julgamentos dessa comissão tenebrosa, que não são públicas, conduziram ao suplício um grande número de velhos escravos. Acusam-se os seus senhores de os haver denunciado à comissão para receber, fazendo-os perecer, um preço maior do que o seu valor real” (Morénas).
Não havia praticamente medo religioso ou sentimento de reprovação cívica ao se exagerar nas medidas de repressão, nos julgamentos equivocados, nos castigos e penas exagerados quando se tratava da população negra. É triste constatar que tal tratamento tomava como diferencial realmente a cor da pele, muito mais do que o ser ou não escravo, uma vez que mesmo os alforriados de segunda ou até terceira geração eram ainda vítimas de abusos. Morénas nos fala sobre o caso de uma senhora que obtendo sua liberdade comprou uma propriedade de seu antigo senhor para si e para as filhas. Tempos mais tarde aparece um parente distante do antigo proprietário e consegue reaver o imóvel, legalmente, com o argumento de que apenas roubando ela poderia ter reunido recursos para comprá-lo.
A maior dificuldade para quem quer entrar no espírito dessa época, saber como era, como afinal pensavam as pessoas e o que sentiam em relação a tudo isso, é decidir que peso tinham os excessos, o quão presentes eram essas ocorrências extremas na vida da população, tanto livre como escrava. Sobre os açoitamentos, Debret relatou: “existem postes de correção [pelourinhos] colocados em todas as praças mais frequentadas da cidade, para nelas fazer em rodízio esses exemplos de punição, após os quais, os fustigados são reconduzidos à prisão”. Nos diz ainda que ocorriam “praticamente todos os dias entre 9 e 10 horas da manhã” e que “essas execuções públicas, restabelecidas em todo o seu rigor em 1821, foram suprimidas em 1829, e foram realizadas posteriormente em um único lugar muito pouco frequentado”, possivelmente um sinal de reprovação da população. As atrocidades são certamente o foco das narrativas e ganham grande publicidade por seu efeito gerador de compaixão, um sentimento cristão e edificante. A produção de textos humanitários em tom de denúncia, esmiuçando o sofrimento dos cativos, ou textos que simplesmente descrevem as barbaridades como curiosidades, como “pitorescas”, palavra que aparece no título dos volumes de Debret, ultrapassa de longe, em quantidade, os que defendiam a escravidão. Os únicos textos que interessavam de fato aos escravistas eram os das leis e das discussões regulatórias, isto é, conquanto que pudessem continuar com seu sistema, não se preocupavam muito em fundamentá-lo filosoficamente e defendê-lo moralmente. Então, esses senhores do tráfico e do cativeiro, organizavam os seus discursos em torno dos efeitos econômicos, dos interesses do Império, dos direitos adquiridos e estabelecidos, da sobrevivência e saúde dos colonos, mas jamais pelos seus fundamentos e métodos. Geralmente minimizavam a violência e chegavam a declarar, como vimos mais acima, que a escravidão era um bem para os negros pois tirava-os da selvageria em que viviam trazendo-os para a civilização.
O fato é que com tudo isso, apesar de tudo isso, durante o século XIX o Brasil foi visto como um país onde a escravidão era mais “suave”. Cochin, por exemplo diz que: “Podemos bem dizer que no Brasil a escravidão é bem gentil [doux, no francês], quem viu no Rio os negros bêbados, jogadores, gatunos, debochados, quem visitou a Casa de Correção, quem foi até as estâncias do Sul, sabe o que pensar da moralização e da boa vida dos negros”. Debret, com toda sua indiferença e até gosto para colocar em relevo os defeitos e incivilidade dos portugueses, quando introduz a legenda a sua litografia 45 Execução da pena do Chicote e Negros ao tronco nos diz: “Se bem que o Brasil seja certamente a parte do novo mundo na qual trata-se o negro com o máximo de humanidade, a necessidade de se manter dentro do controle uma numerosa população de escravos, forçou a legislação a indicar em seu código penal a punição pelo chicote”.
Fletcher, apesar de reconhecer que os europeus e descendentes tinham uma vantagem inicial considerável, via o Brasil como um lugar, especialmente comparado aos Estados Unidos, onde o mérito e a perseverança poderiam levar alguém, mesmo com descendência africana, a posições de bastante destaque. Observava que já no plano jurídico: “A constituição brasileira não reconhece, direta ou indiretamente, cor como uma base para direitos civis; então, uma vez livre, o negro ou o mulato, se ele possuir energia e talento, pode subir até uma posição social da qual sua raça, na América do Norte, está impedida”.
Relata suas experiências pessoais aproveitando os relacionamentos que teve com a então elite brasileira: “Alguns dos homens mais inteligentes que eu encontrei no Brasil – homens educados em Paris e Coimbra – eram de descendência Africana cujos ancestrais foram escravos. Então, se um homem tiver liberdade, dinheiro e mérito, não importa quão escura possa ser a sua pele, lugar algum na sociedade lhe é recusado. É surpreendente também observar a ambição e o avanço de alguns desses homens com sangue de negro em suas veias. A Biblioteca Nacional fornece não apenas salas silenciosas, mesas grandes e muitos livros, para os que buscam conhecimentos, mas também canetas e papel são fornecidos à vontade para os estudos. Alguns dos mais compenetrados estudantes são mulatos. Antigamente uma grande e bem sucedida editora em Rio – do Sr. F. Paulo Brito – era de propriedade e dirigida por um mulato. Nas faculdades de medicina, direito, estudos de teologia, não há distinção de cor. É preciso admitir, no entanto, que existe – ainda que não seja forte – um certo preconceito generalizado que favorece o homem de pura descendência branca”. Vemos que ele coloca a situação mais em termos de uma vantagem em ser branco do que propriamente um impedimento peremptório aos negros e mulatos para progredir. E por essas observações ele conclui, em 1868, que “A escravidão está condenada no Brazil. Como já foi mostrado, quando a liberdade é obtida, podemos dizer que em geral não não existem dificuldades sociais, como nos Estados Unidos, que possam segurar um homem de méritos. Tais dificuldades existem em nosso pais. Das quentes regiões do Texas até os cantos mais frios de Nova Inglaterra o negro livre, não importam os dons que ele tenha, experimenta obstáculos à sua elevação que são intransponíveis”.
O contraste dessas opiniões relativamente favoráveis com os numerosíssimos relatos de histórias que as desmentem, talvez seja explicável por um fator temporal, pois ao longo do tempo é inegável que a situação e integração dos escravos e seus descendentes melhorou bastante. Sobre isso, em vez dos instantâneos produzidos por visitantes como Debret, Fletcher ou Cochin, deveríamos considerar as observações de historiadores que fizeram esse levantamento ao longo dos três séculos e meio de escravidão no Brasil. Perdigão Malheiro foi um deles e no seu terceiro volume de A Escravidão, ensaio ensaio histórico-jurídico-social esse fator de transformação da condição dos cativos é evidenciado em vários pontos. A começar pelos castigos “A barbaridade de castigos, que senhores desumanos infligiam, apesar da proibição e rigor das leis, a seus escravos, é hoje coisa rara […] É verdade que em alguns lugares sobretudo nas fazendas esses castigos são ainda hoje empregados, sobressaindo por mais duros o tronco e os açoites. Mas há muito mais moderação do que em outros tempos – As leis, por seu lado, também têm influído e concorrido para este melhoramento dos costumes”.
Além do rareamento dos castigos, Malheiro observa o surgimento de sinais de distinção e igualdade que não existiam em outros tempos: “Nas cidades já se encontram escravos tão bem vestidos e calçados, que, ao ve-los, ninguém dirá que o são. Até o uso do fumo, o charuto sobretudo, sendo aliás um vício, confundindo no público todas as classes, nivelando-as para bem dizer, há concorrido a seu modo para essa confraternidade, que tem aproveitado ao escravo. O empréstimo do fogo ou de charuto aceso para que um outro acenda o seu e fume, tem chegado a todos, sem distinção de cor nem de classe – e assim outros atos semelhantes”.
Sobre o uso do sapato, que fora por muito tempo uma espécie de identificação do escravo, temos um exemplo da afirmação de Malheiro na litografia nº 5 de Debret, Um funcionário do governo saindo de sua casa com a família, na qual a camareira aparece muito elegante e calçada mesmo sendo uma escrava.
Os negros de ganho, sobre os quais já falamos, formavam uma população numerosa no Rio de Janeiro e podemos obviamente dizer que eram alvo de pura e simples exploração sem nem mesmo as atribulações do comando. O infeliz entregava uma parte significativa de suas receitas a alguém que não tinha outra qualidade ou função senão a de ser o seu dono e recebe-las. Debret nos fala dos hábitos dos petit rentiers, uma classe de parasitas vivendo dessa condição. Já Malheiro via o negro de ganho como uma liberalidade e uma oportunidade em muitos casos. Um típico caso de copo meio cheio ou meio vazio: “A muitos permitem os senhores que vivam sobre si, com a obrigação apenas de darem um certo salário ou jornal, o restante é pecúlio dos escravos que assim lucram, e vivem quase que isentos da sujeição dominical, quase Iivres – No campo ou nas fazendas, os donos costumam dar-lhes terras para trabalharem para si, no intuito não só de evitar a ociosidade, mãe dos vícios, mas também de proporcionar aos escravos, sobretudo casados e com família, ocasião de mais alguns recursos pelo trabalho próprio. O pecúlio é, pois, tolerado”.
Cresciam muito as alforrias espontâneas e gratuitas. Um caso típico era que se libertassem as babás quando seus serviços como tais não fossem mais necessários. Servir no exército era outro caminho para a manumissão. Historicamente as guerras pagam ou prometem mais do que o simples soldo. Pilhagens, inclusive de pessoas para escravizar ou vender, eram comuns desde a antiguidade. Recentemente, prática semelhante revelou-se na concessão de green card a imigrantes ilegais que se alistaram nos Estado Unidos, e que foram enviados para a guerra do Iraque. No Brasil do império, no início era apenas para o soldado mas logo estendeu-se o benefício à sua mulher que era assim automaticamente libertada junto com o marido (lei de 1866 – Malheiro Vol III).
Enfim, iniciou-se um processo acelerado de corrosão do sistema da escravidão e tornou-se motivo para grande aprovação social o desprendimento do senhor que, sem esperar a abolição oficial, adiantava-se a conceder a liberdade aos seus escravos. “A alforria tem provindo, falando em geral, de cidadãos de todas classes, desde o Chefe do Estado até os mais obscuros, homens ou mulheres, seculares ou eclesiásticos. Todos quase que porfiam a quem maior número libertará” (Malheiro Vol III). Esse já era o espírito e ainda foram precisos mais de vinte anos para que viesse a lei Áurea.
Cristãos-novos e Cidadãos-novos
Cristãos-novos foram judeus que viviam em Portugal no final do século XV e por um decreto real for convertidos ao cristianismo (Portugal, judeus e a Inquisição). Acho interessante pensar na abolição da escravidão, ou qualquer processo mesmo individual de manumissão, também como uma “conversão” do escravo em cidadão. Até esse momento ele era um ser externo, um estrangeiro, um não membro, quase um não humano, mas pelo ato cívico de sua alforria ele torna-se membro da sociedade. O mesmo aconteceu com os judeus convertidos, não só no aspecto religioso mas, o que mais importa aqui, no aspecto cívico também, pois para se ter plenos direitos e se estar integrado à sociedade, era preciso ser cristão. Não se era cidadão e paralelamente se escolhia uma religião, ser plenamente cidadão já significava abraçar a religião oficial.
O interesse em colocar nessa perspectiva é que nos dois casos essa “conversão”, ou essa tentativa de inclusão, parece marcar um tipo especial de preconceito que se estabelece e é provavelmente esse o tipo mais perverso e duradouro. É aquele que este estudo almeja compreender melhor.
Antes da conversão, alforria ou, vamos chamar genericamente de “inclusão”, pois era um ato de inclusão, temos como que duas esferas que são estanques, mas a partir dessa inclusão oficial, seus membros passam a dividir um espaço comum, um espaço no qual os novatos não são plenamente aceitos mas no qual eles querem ou precisam se inserir. Existe então essa contradição no grupo que os recebe, institucionalmente, legalmente, politicamente, este grupo, através de suas leis parece querer receber e absorver os novos entrantes. Mas no contato diário com a população, eles são rechaçados e postos de lado. O tempo todo são lembrados de sua condição anterior, chegam a ser obrigados a portar símbolos que indiquem sua origem como se as leis oficiais de inclusão de nada valessem. No caso dos escravos esse símbolo era a própria cor da pele, mas os Cristãos-novos precisavam costurar uma estrela em suas vestes para que não se confundissem com os Cristãos-velhos. Por essa condição de um passado do qual eles não podem se livrar, são rejeitados, inferiorizados e desprezados.
A ideia de preconceito como uma opinião desfavorável sobre alguém ou um grupo que não conhecemos muito bem, pela distância ou por recusa, embora verdadeira, é muito pouco elucidativa dos casos reais e recorrentes que temos na história. É quase que apenas a interpretação semântica do que resulta da adição do prefixo “pré” ao substantivo “conceito”. Pode levar à falsa impressão de que o que falta, para que o preconceito desapareça, é instruir o preconceituoso sobre a boa índole daqueles que ele tanto despreza. Isso é totalmente falso. Esse ponto foi discutido no texto sobre Índios e colonos no Brasil. O preconceituoso não quer nem ouvir falar sobre igualdade. Não quer verificar nada, não quer testar nada, não quer competir, prefere antes barrar qualquer chance de comparação. O preconceito não é um mal entendido, é um instrumento de repressão que visa manter o grupo que está na porta querendo entrar, que tem o direito de entrar, eternamente do lado de fora.
O preconceito como ignorância malvada, dirigido a povos distantes, diferentes ou semelhantes aos locais, pode ser recíproco e provavelmente faz parte da construção da identidade e do orgulho nacional. O preconceito que visa frustrar a inclusão social nunca é recíproco e é isso que o torna odioso e covarde. A vítima muitas vezes busca refúgio nos guetos, na volta às raízes, à uma cultura original, mas muitas vezes esta já se perdeu. A vítima do preconceito está quase sempre espremida entre dois mundos e já não tem como voltar à condição de pré-inclusão frustrada. Fica presa em um limbo, a uma condição de não pertencimento ao que já foi e e também ao que aguarda vir a ser.
Os marranos, judeus convertidos que procuravam manter-se secretamente na religião judaica, mesmo correndo risco de vida por conta da Inquisição que os perseguia como maus cristãos, com certeza viam nesse ato de resistência uma forma de contrapor o desprezo que experimentavam mesmo sendo oficialmente cristãos. Difícil dizer se a rebeldia teria o mesmo sentido caso tivessem sido fraternalmente acolhidos pelos cristãos velhos. Mas é certo que tinham toda uma tradição à qual apegarem-se para salvar sua auto-estima e consciência de pertencimento a uma cultura e sistema de valores os quais, ainda que clandestinos naquela situação, lhes aqueciam e davam sentido às suas vidas.
Já para os ex-escravos, os Cidadãos-novos, a situação era mais difícil. Como vimos acima, tentava-se apagar até mesmo a memória dos que chegavam e as gerações seguintes, tiradas de suas famílias, como regra nem sabiam de onde vieram seus antepassados na África tão grande e diversa.
É duplamente perverso tirar alguém de seu lar e sua cultura, cortar esses laços, para depois impedir, atrapalhar, recusar que ele se integre plenamente no país e na gente que o recebeu. Pior ainda, esse país que o recebeu, já de longa data, não é mais, nunca foi, “puro” de coisa alguma, sempre foi um amalgama de muitas culturas, dos povos que inevitavelmente e felizmente se irrigaram e se misturaram. O azeite entrou na Península Ibérica, onde se cozinhava com gordura de porco, por influência dos judeus e árabes. A quantidade de saberes e costumes que vieram da África para o Brasil é enorme e no dia a dia já nem nos damos conta se são europeus, africanos ou de onde for. No entanto, persiste essa atitude de exclusão que é o preconceito, baseado quase que exclusivamente em um único atributo identificável que é a cor da pele.
Lembro de um rapaz de família de imigrantes da Tunísia, mas já na quarta geração, dando entrevista a uma TV francesa, indagado sobre como se sentia ao ser por vezes tratado com preconceito, como estrangeiro em seu próprio país, por conta de suas feições marcantes, emocionado respondeu algo como: a única língua que eu falo é a francesa, a única comida que eu gosto é francesa, a única escola que frequentei é francesa e a única música que escuto é francesa… meu time é o PSG… se eu não for francês, eu não sei… me digam então, o que é que eu sou?